quarta-feira, 26 de junho de 2024

Angola | Nobre e Velha Cidade do Dondo -- Artur Queiroz

Artur Queiroz*, Luanda

Alda Lara nasceu no dia 9 de Junho de 1930. Se fosse viva, tinha feito agora 94 anos. Para o ano, por esta altura, comemoramos os 95 anos do seu nascimento. Morreu com 31 anos mas já mãe de dois rapazes. Um deles é médico no nosso Hospital Militar de Luanda. Nós, os vivos, ano após ano, deixamos acumular poeira sobre aquela que foi a voz feminina mais extraordinária da Literatura Angolana. E mais de 60 anos após a sua morte não apareceu mais ninguém como ela. É, sem dúvida, a maior poetisa nacional, uma das maiores de Língua Portuguesa e da Literatura Universal.

Quando morreu, em 1962, o seu irmão, Ernesto Lara Filho (cronista, repórter e poeta, por esta ordem…), estava no exílio. Regressou à Mãe Pátria para se recolher ante a sua campa rasa, no cemitério do Dondo. A PIDE prendeu-o. Algum tempo depois foi libertado, mas sob rigorosa vigilância policial. 

Mal pôs os pés fora da cela Ernesto Lara Filho rumou ao Dondo e plantou uma acácia rubra à cabeceira da tumba de Alda Lara. Alguns anos depois, à sombra da árvore já adulta, Mano Arnesto, Pedro Jara de Carvalho, Joca Luandense, o pintor Roberto Silva, o poeta popular repentista Álvaro Novais, o comandante Leopoldo (funcionário da DTA hoje TAAG), Lopo de Morais, o velho Diogo Dá Mesquita e eu, fomos ao cemitério do Dondo homenagear a poetisa Alda Lara. Declamámos os seus poemas e bebemos maruvo de bordão, o glorioso champanhe nacional.

Mais tarde comemos mufetes de cacussos e kimaias nas margens do Cuanza, na muito antiga e nobre cidade do Dondo. Tudo regado a vinho de ananás Bangasumo e uísque Sbell, esmeradamente fabricados pelo Artur Pires nas caves do Lobito, as mais famosas do nosso mundo.

A Aldinha continua a ser uma poetisa extraordinária, a maior de todas as angolanas e uma das maiores de Língua Portuguesa. Mas continuam a ignorar a sua obra, a sua importância no Movimento Vamos Descobrir Angola e sobretudo na geração da Mensagem. Sei porquê. Mas não me apetece falar dessas misérias morais. Basta ler um só dos seus poemas para se perceber o lixo que anda por aí, apresentado falsamente como ouro de lei.

Durante muitos anos a crítica oficial era constituída por sargentos milicianos e intelectuais portugueses com o cérebro infiltrado pelas taras do colonialismo. Foi uma das formas mais humilhantes com que esses críticos literários, de origem bravia, nos atacaram. E ainda atacam!

Um dia pedi ao camarada Agostinho Neto para patrocinar o desenterro da Aldinha e do grande Geraldo Bessa Victor, o genial percursor do Movimento Vamos Descobrir Angola. Ele garantiu-me que ia mandar uma mensagem ao Mário António para se encarregar dessa missão patriótica. Mas Neto morreu logo a seguir e nem chegou a contactar o seu irmão na arte literária e na conspiração política. 

Já o Mário António era administrador da Fundação Gulbenkian e pedi-lhe para fazer ensaios sobre a Aldinha e o Geraldo Bessa Victor. Ele, delicado como sempre, disse que sim. Mas as suas funções não lhe permitiam fazer um trabalho à altura desses dois vultos da nossa Literatura.  Não tinha tempos livres.

O Orlando de Albuquerque, viúvo da poetisa maior, quando fugiu do Lobito com os filhos, para não serem mortos pela UNITA, arranjou emprego como médico no Hospital de Braga e lutava bravamente para educar os seus rapazes, paridos do ventre de Alda Lara. Desde que chegou a Portugal, dedicou todos os seus tempos livres à divulgação da obra da Aldinha, menina de Benguela educada no colégio das madres do Lubango, Paula Frassinetti.  

E como o Orlando era grande! Além de que lhe devemos a editora Edições Capricórnio. Tive a honra de fazer com ele a página de artes e letras do jornal diário “O Lobito. Ainda durou três anos! Fazíamos concorrência ao Carlos Ervedosa que tinha um suplemento literário no “Província de Angola” hoje “Jornal de Angola”. Era um suplemento semanal. Foi o meu querido amigo Carlitos que revelou nomes como Jofre Rocha, João Maria Vilanova, Jorge Macedo, Domingos Van-Dúnem, Benudia, João Abel, Cândido da Velha e tantos outros. Também o enterraram no esquecimento!

A Aldinha deixou de escrever quando acabou o curso de Medicina. Naquele tempo, uma médica tinha direito a ganhar muito dinheiro. Um casal de médicos (ela e o Orlando) ainda mais. Sabem o que fez? Foi trabalhar para a barragem de Cambambe, nessa época em construção. Nas horas vagas andava de aldeia em aldeia, de cubata em cubata, fazendo consultas e garantindo cuidados de saúde primários aos camponeses. Mau exemplo!

No passado dia 9 de Junho, Alda Lara faria 94 anos. Voltou a ser ignorada pela intelectualidade nacional. Pelas mulheres e homens de letras. Pode ser que no próximo dia 30 de Janeiro, data da sua morte, o Ministério da Cultura, a União dos Escritores Angolanos e outras instituições dedicadas ao fabuloso mosaico cultural angolano se lembrem da nossa poetisa maior.

Por favor, não consintam que uma das mais belas vozes poéticas da Literatura Universal, angolana de Benguela, continue enterrada na poeira do esquecimento.

Neste Junho caminhando para o fim deixo-vos dois poemas de Alda Lara.

* Jornalista

Alda Lara

Prelúdio

Pela estrada desce a noite
Mãe-Negra desce com ela.

Nem buganvílias vermelhas,
nem vestidinhos de folhos,
nem brincadeiras de guizos
nas suas mãos apertadas...

Só duas lágrimas grossas,
em duas faces cansadas.

Mãe-Negra tem voz de vento,
voz de silêncio batendo
nas folhas do cajueiro...
tem voz de noite descendo
de mansinho pela estrada.

... Que é feito desses meninos
que gostava de embalar?
Que é feito desses meninos
que ela ajudou a criar?
Quem ouve agora as histórias
que costumava contar?

Mãe-Negra não sabe nada.
Mas ai de quem sabe tudo,
como eu sei tudo,
Mãe-Negra...

É que os meninos cresceram,
e esqueceram
as histórias
que costumavas contar...
Muitos partiram pra longe,
quem sabe se hão-de voltar!...

Só tu ficaste esperando,
mãos cruzadas no regaços,
bem quieta, bem calada...

É tua a voz deste vento,
desta saudade descendo
de mansinho pela estrada...

Rumo

É tempo, companheiro!
Caminhemos ...
Longe, a Terra chama por nós,
e ninguém resiste à voz
Da Terra ...

Nela,
O mesmo sol ardente nos queimou
a mesma lua triste nos acariciou,
e se tu és negro e eu sou branca,
a mesma Terra nos gerou!

Vamos, companheiro ...
É tempo!

Que o meu coração
se abra à mágoa das tuas mágoas
e ao prazer dos teus prazeres
Irmão
Que as minhas mãos brancas se estendam
para estreitar com amor
as tuas longas mãos negras ...
E o meu suor
se junte ao teu suor,
quando rasgarmos os trilhos
de um mundo melhor!

Vamos!
que outro oceano nos inflama.. .
Ouves?
É a Terra que nos chama ...
É tempo, companheiro!
Caminhemos ...

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