Margarida Ribeiro | Notícias ao Minuto
Depois das notícias das últimas semanas, nomeadamente as do caso do deputado português acusado de roubar malas de viagem, a cleptomania surgiu como uma possível forma de justificar este comportamento. Falámos com Patrícia Câmara - psicóloga e psicanalista - para esclarecer algumas dúvidas sobre esta condição.
Em Portugal, as últimas semanas ficaram marcadas pelo caso de Miguel Arruda, o deputado português, eleito pelo Chega no círculo dos Açores, agora deputado independente, constituído arguido por ser suspeito de furtar malas nos aeroportos de Lisboa e de Ponta Delgada.
Depois de muitas piadas, e até músicas, sobre o assunto, a maioria dos portugueses começou a questionar o que terá motivado o deputado. Entre as teorias mais populares está uma que envolve uma condição que nem todos conhecem bem: a cleptomania. O que é?
É, antes de mais, muito importante lembrar que "sem uma avaliação clínica detalhada, não é possível afirmar se o caso se enquadra ou não num comportamento de cleptomania", afirma Patrícia Câmara, uma psicóloga e psicanalista, entrevistada pelo Lifestyle ao Minuto na rubrica O Médico Explica. Mesmo assim a especialista esclareceu algumas questões sobre este problema.
Com o ato de roubar, procura-se uma regulação psicofisiológica que, num determinado momento, não se está a conseguir atingir de forma ajustada.
O que é a cleptomania?
É, acima de tudo, o desejo irresistível e incontrolável de roubar, algo que se traduz numa incapacidade recorrente de resistir ao impulso de o fazer. Há uma compulsão interna, normalmente com pensamentos intrusivos, que conduz ao impulso e ao ato a ele associado, seguido por sentimentos de alívio e, muitas vezes, de culpa ou arrependimento.
Geralmente, não existe, nem a intenção de utilizar aquilo que se furtou, nem o desejo de obter um benefício material associado. Aliás a maioria dos objetos furtados pode não ter valor pessoal aparente, nem valor material significativo.
Ao contrário do furto comum, que se constitui como um meio para atingir um fim, na cleptomania o fim é o ato em si e o que ele comporta. Os furtos isolados ou motivados por outros fatores não caracterizam a cleptomania.
Pode ser sintoma de sofrimento psíquico e uma expressão de tentativas de regulação psicofisiológicas desajustadas (físico e psicológico ao mesmo tempo).
Envolve sempre o furto de objetos? Pode manifestar-se de outras formas?
Está associada, na maior parte das vezes, ao furto de objetos, mas é essencial perceber que o foco não está no valor material desses objetos, mas sim no próprio ato. Só faz sentido pensar no valor material dos objetos como um dos ingredientes que pode contribuir para o impulso, se para a pessoa que apresenta essa problemática, esse valor fizer parte da equação. Importa perceber o 'valor' simbólico do furto e do objeto furtado.
Situações de muito stress emocional, o sentimento de solidão, impasse ou tédio, momentos em que a pessoa se sinta desvalorizada ou ignorada podem aumentar a impulsividade
O que leva uma pessoa com este problema a querer roubar?
A singularidade, complexidade e riqueza da existência e da mente humana não permitem uma resposta única a esta questão, mas permitem levantar outras. Ainda assim, parecem não existir dúvidas de que, com o ato de roubar, se procura uma regulação psicofisiológica que, num determinado momento, não se está a conseguir atingir de forma ajustada.
O que acontece em nós para que o impulso de passar despercebido numa clandestinidade transgressora, correndo o risco de ser 'apanhados' em falso, seja mais forte do que a nossa capacidade de travar esse comportamento? Entre as substâncias psicofisiológicas associadas ao próprio comportamento e o significado emocional que todo este movimento tem, pode estar subjacente a ideia, contrária, creio, ao que seria expectável, de que não somos merecedores de ter à luz do dia aquilo que procuramos ter desta forma. Mas claro, há muitas outras hipóteses.
Em todas elas não podemos descurar a tensão excitatória provocada pelo ato e as sensações associadas, nem deixar de pensar se os objetos furtados estão no lugar da ausência de companhia interna em determinados momentos da vida, especialmente vividos na infância. Como sabemos, o que acontece na infância é marca indelével que transportamos na vida até que seja ressignificado.
Existem fatores de risco?
Existem alguns, comuns a outras compulsões: a existência de situações traumáticas pontuais ou cumulativas, como experiências de abandono, negligência ou abuso; dificuldades de regulação emocional da raiva, frustração ou solidão; desequilíbrios em neurotransmissores como a serotonina que regulam o humor e o controlo dos impulsos.
Que tipo de situações podem ser gatilho para as pessoas com este problema?
O gatilho é habitualmente interno e nem sempre identificável. No entanto, sabe-se que as situações de muito stress emocional, o sentimento de solidão, impasse ou tédio, momentos em que a pessoa se sinta desvalorizada ou ignorada podem aumentar a impulsividade.
Pessoas com este problema sentem culpa depois de roubar alguma coisa?
Na maioria das vezes, sim. Sentem culpa e vergonha e não se reconhecem naquele tipo de comportamento, mas a culpa pode ser tanto um resultado do ato, como vir a tornar-se, pelo mal estar que causa, um fator que perpetua e aumenta a impulsividade.
É possível controlar e a pessoa conseguirá encontrar, através do próprio processo terapêutico, formas mais saudáveis de gerir e viver as suas angústias
Que tratamentos são recomendados a pessoas com esta condição?
É muito importante que a pessoa procure psicoterapia para que possa elaborar e compreender melhor o seu mundo interno e os impulsos que dai advém e, dessa forma, diminuir esses mesmos comportamentos. Pode também ser necessário recorrer em simultâneo a consultas de psiquiatria para diminuir o sofrimento psicológico e a impulsividade subjacente.
É possível controlar?
Sim, com uma intervenção terapêutica adequada, é possível controlar e a pessoa conseguirá encontrar através do próprio processo terapêutico formas mais saudáveis de gerir e viver as suas angústias.
O que podemos fazer para ajudar alguém com este problema?
Como em todas as situações associadas a atos compulsivos, que acabam por ter valor psicofisiológico por si próprios, é essencial ajudar a pessoa a procurar ajuda especializada. Tentar uma abordagem de apoio e nunca de julgamento e incentivar a que pessoa partilhe sempre que consiga os seus pensamentos intrusivos de desejo de roubar antes de fazê-lo.
É importante que as pessoas significativas da vida de quem está a passar por isto estejam o mais informadas possível sobre o que é a cleptomania para que nenhuma confusão entre roubo intencional e cleptomania aconteça. Esta confusão pode ter consequências devastadoras e contribuir para aumentar a própria cleptomania.
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