quinta-feira, 20 de março de 2025

Portugal | MONTENEGRO, OU A VITÓRIA DOS VALDEVINOS

Pedro Almeida Vieira | Página Um

Portugal é, há muito, um terreno fértil para o florescimento de valdevinos. Não nos enganemos com a suavidade do termo: valdevinos são, na substância, os artífices das pequenas e grandes vigarices da nossa vida pública, indivíduos que fazem da arte de iludir e beneficiar-se do erário público um modo de vida respeitável — ou, pelo menos, tolerado. Mas o caso de Luís Montenegro eleva esta triste linhagem a um novo patamar, um grau superior de desfaçatez e de desprezo pela ética republicana e democrática.

Aquilo que agora sabemos – e já não se pode negar – é que o ainda primeiro-ministro criou, em 2020, uma empresa de consultoria, a Spinumviva, sem rosto nem corpo, sem escritório conhecido (a sede era na casa de Montenegro), sem uma página electrónica onde se pudesse ler sequer uma linha da missão ou qualquer descrição de serviços para angariação de clientes. Não há registo de empregados, nem de qualquer estrutura que mereça o nome de empresa. No entanto, esta ‘entidade-fantasma’ facturou mais de 650 mil euros em dois anos e margens operacionais absurdamente elevadas, como o PÁGINA UM revelou em primeira mão em 16 de Fevereiro, antes da outra imprensa. Continuou a facturar mesmo após Montenegro assumir a liderança do Governo. E só após semanas de hesitações, meias verdades e omissões é que se ficou a saber quem eram os seus clientes, por revelações da imprensa: entre outros, empresas como a Solverde e a Rádio Popular, cuja dimensão dispensa apresentações, mas cuja real necessidade de serviços de “consultoria” de Montenegro permanece uma incógnita para qualquer espírito minimamente exigente.

Noutros tempos, noutras geografias políticas, este simples facto seria motivo mais do que suficiente para a demissão de um primeiro-ministro, e aquilo que deve causar admiração é ter sido necessário uma moção de confiança no meio do circo parlamentar. Não porque tivesse sido provado algum ilícito penal – embora isso possa ainda vir a acontecer -, mas porque em democracia se exige que os governantes não apenas sejam sérios, como também o pareçam.

Um homem que, de forma obscura e opaca, com as suas responsabilidade, cria e depois mantém uma empresa familiar sem qualquer lastro, apenas para receber avenças por serviços que ninguém consegue explicar ou justificar, não pode ser primeiro-ministro de um país que se pretenda civilizado e europeu.

A questão de fundo não é, reitere-se, se Montenegro cometeu um crime. A questão é de decência e de respeito pelas regras mínimas da ética pública. Se a Spinumvia fosse uma sociedade reconhecida no mercado, com equipa consolidada, provas dadas e resultados publicamente conhecidos, poderíamos, talvez, admitir que Montenegro estava apenas a exercer a sua actividade de consultor com dignidade. Mas não. Trata-se de uma microempresa familiar – cujos beneficiários são os seus filhos e a sua mulher – criada para canalizar rendas e avenças, funcionando como veículo de oportunidades que só o conhecimento de bastidores e a influência política permitem captar. E jamais saberíamos para o que viria a servir no futuro. Aliás, basta observar o caso Manuel Pinho.

Que a Solverde ou a Rádio Popular tenham sentido necessidade de contratar uma empresa sem rosto, sem currículo e sem presença no mercado para a prestação de serviços de consultoria deveria, por si só, levantar as maiores suspeitas. Que Montenegro não tenha visto neste arranjo qualquer inconveniente ético, e tenha continuado a esconder os clientes semanas a fio, revela uma preocupante falta de noção sobre o que é ser governante em democracia.

Num país onde a democracia estivesse plenamente consolidada, a demissão de Montenegro seria um sintoma de saúde institucional. Não haveria drama, nem precipício, nem vácuo de poder: o PSD escolheria outro líder, o Governo prosseguiria com outro rosto, e os cidadãos sentir-se-iam minimamente protegidos pela exigência ética imposta aos seus representantes. Mas o que assistimos é precisamente o contrário.

No seio do próprio PSD, não houve uma única voz de peso que se erguesse para contestar a manutenção de Montenegro na liderança. Com a única e paradoxal excepção de Ângelo Correia, ninguém se mostrou incomodado com a degradação ética a que o partido foi submetido. Mais grave ainda: nem sequer se colocou a hipótese de que Montenegro pudesse ser substituído por outro social-democrata no Governo, ou que para as eleições antecipadas de Maio fosse escolhido outro candidato. O silêncio cúmplice do partido e o amolecimento da opinião pública revelam que, no Portugal de hoje, o padrão de exigência ética dos eleitores e dos eleitos atingiu um dos seus pontos mais baixos.

De resto, a forma como a imprensa dominante tem abordado o caso – ora relativizando, ora desviando o foco para outros temas -, e como as sondagens continuam a projectar Montenegro como potencial vencedor, deveria preocupar qualquer cidadão que se preze. Não há um sobressalto cívico. Não há uma indignação genuína. A banalização da promiscuidade entre política e negócios atingiu tal ponto que um primeiro-ministro apanhado em esquemas obscuros de avenças familiares não só se mantém em funções, como ainda é visto como vencedor provável das próximas eleições.

Se Montenegro vencer as eleições de Maio, será uma vitória dos valdevinos. Será a consagração pública de um modelo de fazer política que permitirá aos governantes criar empresas de fachada para canalizar rendas, disfarçar negócios e beneficiar de ligações de bastidores sem qualquer escrutínio efectivo. Será um salvo-conduto para que, no futuro, qualquer político possa fazer o mesmo, escondendo os clientes, omitindo os fluxos financeiros, e depois, apanhado em flagrante, alegar que está tudo bem.

A democracia portuguesa está a ser reduzida a uma Economia de Estado onde se alimentam empresas, empresários e políticos que se confundem entre si. O Estado, com as autarquias, continuam a ser o maior motor da Economia nacional – pelo menos para uma franja empresarial relevante –, mas quando se analisam os contratos públicos, os ajustes directos e os espectáculos efémeros de que se enche o calendário, torna-se evidente que se pratica cada vez mais um jogo de pão e circo — expressão que, segundo os manuais de História, provém da Roma decadente e corrupta dos imperadores que compravam o apoio do povo com grão e divertimentos. Por outro lado, as empresas privadas querem sempre estar de bem com o poder e os políticos, mesmo que não tenham tenham contratos públicos, porque a ‘mão do Estado’ decide na regulação, nas concessões, na fiscalização e aprovação de financiamentos.

O problema é que, em Portugal, o pão já escasseia e o circo já nem sequer diverte. As grandes obras são inauguradas com pompa e circunstância para meia dúzia de beneficiários, os eventos culturais e festivais servem para encher os bolsos das mesmas empresas do costume, e se há concursos públicos são muitas vezes desenhados para um dos concorrentes ‘pré-seleccionado’ possa vencer. Os benefícios aos cidadãos, quando existem, são residuais. Hoje, há uma rede de cliques e clientelas que gravita em torno do poder.

Por muito que me custe reconhecê-lo, e mesmo admitindo que as alternativas não sejam mais virtuosas, uma vitória de Luís Montenegro nas eleições de Maio seria um péssimo sinal para a democracia portuguesa. Seria a legitimação do valdevinismo como método legítimo de ascensão e manutenção no poder. E se um país aceita como normal que o seu primeiro-ministro tenha um passado e um presente de opacidade e promiscuidade, então é porque está disposto a aceitar tudo.

Num tempo em que, com meio século de democracia, a dar sinais de doença, se exigiria cada vez mais rigor, transparência e ética na governação, Portugal arrisca-se a ser olhado como um país que não aprendeu as lições básicas. Se Montenegro permanecer no poder, não será por mérito seu, mas pelo colapso moral de uma sociedade que se habituou a tolerar tudo. E um povo que tolera tudo, arrisca-se a perder tudo – inclusive a dignidade.


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