MARTINHO JÚNIOR
BURGUESES
Não me dão pena os burgueses
vencidos. E quando penso que vão a dar-me pena,
aperto bem os dentes e fecho bem os olhos.
Penso em meus longos dias sem sapatos nem rosas.
Penso em meus longos dias sem abrigos nem nuvens.
Penso em meus longos dias sem camisas nem sonhos.
Penso em meus longos dias com minha pele proibida.
Penso em meus longos dias.
- Não passe, por favor. Isto é um clube.
- A relação está cheia.
- Não há vaga no hotel.
- O senhor saiu.
- Deseja uma mulher.
- Fraude nas eleições.
- Grande baile para cegos.
- Caiu o Prémio Maior em Santa Clara.
- Lotaria para órfãos.
- O cavalheiro está em Paris.
- A senhora marquesa não recebe.
Enfim, toda recordação.
E como toda recordação,
que droga me pede você para fazer?
Além disso, pergunte-lhes.
Estou seguro
de que também recordam eles.
(“Burgueses”, Nicolas Guillen, poeta cubano, revolucionário e universal -
Tradução de Gilfrancisco Santos)
Felizmente são muitos os heróis anónimos da Pátria Angolana e mesmo assim, perdidos na multidão que se faz Povo, eles são a reserva estratégica e segura do movimento de libertação, do MPLA e são, com os olhos secos, com sua resistência feita de convicções, de princípios, de comportamentos, de atitude e de consciência cívica, aqueles que esperam e ao mesmo tempo aqueles por quem se espera, porque se a paz tivesse alma, eles seriam suas partículas essenciais simultaneamente pujantes, viçosas, solidárias, humildes e rebeldes… intemporais…
Sim, porque é preciso um misto de humildade e de rebeldia para a paz: exigir mil vezes a dádiva de si próprio, com amor, dignidade, solidariedade e espírito de justiça, para que alguma vez seja exigido um pouco que seja dos outros… não há outra forma de mobilizar um país, uma nação, um Povo do que pelo exemplo… nem houve outra forma de mobilização para o movimento de libertação que não passasse por aí: com o exemplo dos nossos maiores…
Também é preciso exigir-se que essa rebeldia conscientemente aceite, seja uma renúncia aos caminhos do poder, torne-se num “não poder”, não num contra poder, por que se impõe por aquilo que “é”, não por aquilo que se “tem” por vezes da forma mais ignóbil e sempre da forma mais efémera, mesmo que assim seja distante dum lugar onde se concentram todos os holofotes, mesmo os que foram montados para cegar os incautos… e eles em Angola são tantos: nascem do chão e em catadupas chegam de fora…
Admiro a filosofia dos Zapatistas do México precisamente por isso: para eles o Comandante é o Povo e os chefes são quanto muito Sub Comandantes.
Os patriotas e os cidadãos são-no e sentem-no como o foram e se sentiram Amílcar Cabral, Agostinho Neto, o Che, por que se tornam com seu exemplo intemporais…
Os patriotas são a contradição vital para com os mercenários.
Alguns deles, pouco a pouco apartam-se do mundo dos vivos, por que mais nada têm para dar no apogeu da idade, deram tudo, renunciaram materialmente a tudo e passaram a ter um direito maior: hoje seu corpo exige mais chão do que aquele chão que em sua vida errante mas vertical seus pés pisaram.
Foram íntegros, honestos, solidários, forjaram o sentido da vida, foram e são os homens do grande resgate, do resgate da escravatura, do colonialismo, do fascismo, do “apartheid” e do que hoje e adiante se verá: tinham e têm sede de liberdade, de justiça, de democracia (não aquela que é mediatizada com tanto lucro) e de paz social!
Mesmo dentro das fileiras, aqueles que se renderam e passaram-se para as mercenárias fileiras, dizem para se distanciarem dessa “peste”, por que eles são “comunistas” (é tão fácil julgar os outros impondo-lhes os rótulos de conveniência)… mas eles em sua defesa reclamam apenas: foi aqui e durante as últimas seis décadas a universidade da vida, foi com anti fascistas e com o movimento de libertação que nos fizemos árvore, foi com ele que nos afirmamos como homens, como patriotas e reconhecendo sempre que, a passagem pela vida enquanto indivíduos, era para honrar a vida, com respeito por si próprio, pela Mãe Terra e plenamente identificados na solidariedade com os resgates em benefício do seu Povo e de todos os Povos oprimidos, aqueles disseminados sobretudo nas latitudes e longitudes da antiga (será mesmo antiga?) rota dos escravos…
Entre esses heróis anónimos da Pátria Angolana componente de humanidade, tive a felicidade de encontrar alguns companheiros angolanos e outros de outras nacionalidades, que pertenceram a organismos da defesa e segurança, onde foram colocados pelo MPLA, antes da independência, na primeira República e nas que se lhe seguiram, por que Angola tem um caminho, que nunca foi um caminho fácil, um caminho pejado de obstáculos, de “zigue zagues”, de “quedas na máscara”, de “recuos estratégicos”, enfim de riscos, de incompreensões, de sacrifícios inglórios com algumas pequenas vitórias e tantas, tantas derrotas, mesmo ao dobrar da esquina mais próxima…
De um deles recolhi a seguinte história que lhe pedi para publicar, respeitando a ocultação de seu nome e de outros; eis o seu
DEPOIMENTO:
“Os organismos da Segurança do Estado fizeram a 29 de Novembro de 2010, ano do começo da iniciativa tolerância zero, 35 anos, tantos quanto a República de Angola.
De entre as muitas iniciativas os SISE procuraram recolher depoimentos de muitos dos antigos membros da Segurança do Estado, o que me parece ser uma iniciativa construtiva, para se continuar nos tempos mais próximos, pois as novas gerações precisam de saber e avaliar o que antes foi feito e muito em particular o que de essencialmente patriótico foi feito.
De minha parte, há muitas coisas que recordo dessa universidade da vida, uma universidade sem diploma, nem outros pergaminhos, coisas duma escola de modéstia e de modestos que me parece incontornável, plenamente identificada com a edificação da independência, da soberania e do Estado Angolano e, de entre elas, entre aquelas que ao estabelecerem pontes até aos nossos dias e até sempre me parecem exemplares, recordo o rigor com que nos primeiros anos da República Popular de Angola os oficiais da Segurança do Estado colocaram na defesa do Estado também pela via da defesa do seu património, por respeito e responsabilidade ética e cívica para com os bens do Povo Angolano.
No património, nos bens e equipamentos do nosso Estado ninguém tocava por que eram reconhecidos como bens do Povo Angolano!
Como nos poderíamos identificar com o Povo Angolano se não soubéssemos respeitar os bens disponíveis no âmbito das atribuições do nosso Estado?
Os oficiais com consciência revolucionária, com espírito cívico, com ética e moral, faziam tudo para consolidar o Estado sabendo de antemão que as enormes potencialidades disponíveis em Angola não se poderiam tornar em armadilha para algo que estava acima de qualquer riqueza mundana: a riqueza de participar num processo único de resgate de séculos de opressão, séculos que passaram pela escravatura, pelo colonialismo, pelo fascismo e pelo apartheid, até se chegar àqueles dias épicos, com cabeça fria, coração ardente e as mãos limpas perante o nosso Povo, de todos os Povos da África Austral e do Mundo.
O Presidente Agostinho Neto decidiu logo em 1976 dar início ao processo de combate ao tráfico de diamantes, pois esse tráfico prejudicava a economia da República Popular de Angola e a construção duma sociedade alicerçada no equilíbrio, na busca pela justiça social…
Nessa altura foram detectados e neutralizados, nas suas acções, muitos traficantes, uns de origem europeia, outros de origem africana, angolanos incluídos.
Era regra para os oficiais da Segurança do Estado coligir tudo o que estivesse integrado nesse tráfico, desde os diamantes até aos valores em bens, equipamentos e numerário disponíveis para as operações dos traficantes, entregando aos organismos competentes que os arrecadavam de acordo com os conceitos de respeito pelo património público e aquele tornado público, incluindo logicamente tudo que se apreendia.
Pelas minhas mãos, confesso que vivi, passaram desde logo riquezas incalculáveis, riquezas essas que levaram o caminho próprio dos homens dignos que éramos.
Chegaram-se a apreender veículos, barcos e até aviões, por exemplo, os teco teco da empresa de táxis aéreos que dava pelo nome de ALAR…
Na operação levada a cabo em que foi detido um velho traficante, que então morava no bairro de Alvalade, entre as apreensões contou-se mais de trinta mil contos na moeda ainda em vigor, (ainda não existia Kwanza, apesar da tomada da banca e o Escudo Angolano, moeda colonial, ainda tinha validade).
Recebi ordem para se entregar essa apreensão em dinheiro, na sua totalidade.
Os caixotes com o dinheiro desembarcaram assim directamente na então DISA e a quantia foi suficiente para se pagar o primeiro salário de todo o efectivo dessa Instituição, de Cabinda ao Cunene.
Foi esse o primeiro salário de todo o colectivo da DISA, o primeiro salário que contribuiu para compensar alguns de muitos anos de dádiva e penúria voluntariamente aceite nos trilhos da luta de libertação!
Todos nós, os revolucionários e os honestos, sentimo-nos empolgados com as orientações recebidas e com a prática tão consequente e pedagógica que estávamos a ter, que nos marcaria para toda a vida.
Alguns daqueles que foram caindo em tentações, com o tempo foram tendo dois caminhos: ou fugiam de Angola, ou então eram detectados e neutralizados nas suas acções, de forma a que os castigos administrativos fossem exemplo para os demais, como eram exemplo as boas práticas.
Eu poderia ter sido um dos primeiros ricos deste país se tivesse traído de alguma forma os ideais e os princípios do movimento de libertação e a construção da República Popular de Angola, mas a impossibilidade de tentação para com as riquezas do Estado Angolano perdurou precisamente assim até 1986, ano em que se decidiu alterar o carácter das Instituições do Estado Angolano, se alteraram as opções de tantos… e eu, não por acaso pioneiro da luta contra o tráfico de diamantes, nesse ano de charneira fui preso, julgado e condenado a prisão maior em Bentiaba, num processo que de uma maneira ou de outra atingiu em cheio tantos dos quadros da nossa Segurança de Estado!... a história nos absolverá!...
Hoje alguns comentam em voz baixa e entre outros comentários depreciativos que me abstenho aqui de evocar: eles foram burros, não souberam aproveitar!…
De facto se não o expressam, esses alguns pensam e por isso agem de maneira contrária aos procedimentos dos oficiais revolucionários que deram a sua contribuição honesta, modesta mas tão consequente para o hastear de nossas bandeiras e propiciar heranças de vida às gerações vindouras!
Não os invejo com meus olhos de paz a esses alguns (quantos deles tornados hoje em senhores e excelências) na sua soberba, ostentação, opulência e arrogância, por que não é com o egoísmo próprio desse tipo de gente, sem responsabilidade ética e sem solidariedade, que se constrói um Estado democrático digno e uma Pátria de cidadãos exemplares!
Por isso hoje, tendo em atenção a preocupação pela necessidade de tolerância zero, não posso deixar de lembrar o que se aprendeu nessa universidade que foi desde logo as FAPLA e a Segurança do Estado: a prova de vida pela honestidade e a modéstia é a riqueza inestimável, produtiva e fundamental para se ousar alimentar a sede de Pátria e de Humanidade!
Numa era em que o acesso aos diamantes é para muitos o passo ideal para integração em novas elites, pretende-se fazer esquecer que foi com aqueles burros que se construíram os caboucos da Angola daquela época e de sempre!
Por isso acho ainda hoje que, para que haja tolerância zero, devemos tudo fazer para não sermos contaminados como o foram, o são e o serão, o novo tipo de burgueses que responde de forma tão mercenária aos estímulos de cobiça e riqueza que chegam em catadupa de fora!”
ANOTAÇÃO FINAL:
Creio que se torna cada vez mais premente escrever a história de Angola com todas as suas extraordinárias envolvências por mais ignoradas que elas ainda sejam, bem como a história de suas Instituições.
Depoimentos como esse parecem-me ter bastante conteúdo humano, histórico e pedagógico: é necessário dar continuidade aos resgates históricos e não conduzir, agora que é possível a ausência de tiros, o regresso a qualquer tipo de barbárie (é por vezes tão subtil e “sem fronteiras” a manipulada barbárie neo colonial).
Julgo que com essa aceitação de necessidade se marca a diferença nesta encruzilhada em que nos encontramos, precisamente quando se acentua, quantas vezes através de electrónicas ingerências externas, um propositado quão manipulado conflito de gerações.
Em Angola, que se dê prioridade ao homem, que se cultive nele e com ele efectivamente o “ser”, por que o país é tão escandaloso, sob o ponto de vista geológico e material, que é muito, muito fácil o “ter”, ainda mais no momento em que há tantos Diogo Cão que vão chegando de todos os pontos cardeais e colaterais da Terra atraído pelas “minas de Salomão”: nem que se tenha de se amarrar o navegante ao mastro, para ouvir o canto das sereias, sem lhes cair na tentação!
Trinta e sete anos depois do 25 de Abril, há resgates que mais que nunca são comuns aos povos (e eu refiro-me aqui em particular aos povos componentes da CPLP), que têm indeléveis marcas sócio-culturais e aspirações ideológicas e políticas que cada vez mais se aproximam e inter relacionam!
Não desperdicemos as respostas adequadas aos desafios que se nos colocam, com cidadania responsável, participação e a rebeldia de quem reconhece que a liberdade, ou é para criar oportunidades solidárias para todos, ou não o é!
*Martinho Júnior em Abril, que em Angola é o mês da Juventude.
Imagem: quadro de Malangatana.
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