ANTÓNIO ALTE PINHO - LIBERAL
Pertenço a uma geração que começou a ter um novo olhar sobre a condição da mulher. É uma geração muito peculiar. Era adolescente quando os movimentos de contestação à ditadura em Portugal começaram a ultrapassar os muros altos das grandes universidades, as fronteiras apertadas da classe operária urbana e passaram a entrar, como velha toupeira, pelas escolas secundárias adentro, envolvendo os jovens e as jovens na discussão sobre o ensino democrático e na contestação à guerra colonial. Não era de admirar: o regime fascista rebentava pelas costuras envolto nas suas insanáveis contradições, o país era cada vez mais adverso à cultura autoritária e à lógica da segurança vigiada, e a minha geração – factor não menos relevante – seria a próxima a perder sangue e vidas nas matas da Guiné, de Angola ou Moçambique.
As raparigas e os rapazes do meu tempo começaram a vivenciar um novo estilo de vida. A distribuição clandestina de propaganda, por exemplo, não escolhia género, a decisão sobre outras tarefas também não. E, aos poucos, caiu em desuso essa ideia de se “pedir” namoro a alguém. Os rapazes e as raparigas, simplesmente, “andavam juntos”. Que – no início ainda de forma meio inconsciente – queria dizer: partilhamos as nossas vidas, lado a lado! Logo a seguir, o movimento dos capitães fez o resto: em 25 de Abril de 1974 Portugal parecia uma imensa panela de pressão que, saturada de ser contida à força, explodia vivificadora.
As mulheres tiveram em todo o processo um papel relevantíssimo e, juntamente com os homens, meteram mãos à obra para varrer o lixo da ditadura e construir chão novo de liberdade, paz e democracia. Mas já em gerações anteriores à minha, dezenas de mulheres europeias ou africanas, tiveram importante papel nas lutas pela libertação dos nossos povos. Quando se fala, por exemplo, em “presos políticos” deveria dizer-se com toda a legitimidade “presas e presos políticos”, tal a quantidade e capacidade de resistência das mulheres europeias e africanas que lutaram corajosa e abnegadamente contra a ditadura e o colonialismo.
Ao contrário do papel de menoridade que as sociedades machistas sempre cultivaram, muitas vezes mascarado de “protecção”, as mulheres são hoje, pelo menos na maior parte dos países ocidentais, maioria nas universidades e a maior percentagem em matéria de qualificações, embora a correspondência destas em postos de chefia não traduza esta realidade incontestável. O que é uma pena – e é criminoso!
Nas nossas sociedades, o papel da mulher continua a ser subestimado e os homens, até mesmo os mais “progressistas”, são apanhados na curva lodosa de milénios de alarvidade machista e insanidade preconceituosa. Ainda não perceberam que, perseverando nesse rumo, de homens não têm nada. Podem ter, isso sim, a ilusão efémera do poder ou a diarreia mental de propriedade.
Regressado a Cabo Verde – apesar dos incitamentos para que não saísse da minha terra e fosse debitar para outra tribuna -, foi-me contada uma história que ilustra bem de que modo essa visão retrógrada sobre a mulher pode levar a ocorrências trágicas. Um jovem, insatisfeito com a recusa da namorada em manter a relação – não por ter arranjado outra paixão mas por estar farta de o aturar -, resolveu matá-la à facada e, não satisfeito, assassinou também a irmã dela. Porquê a irmã? Quereria vingar-se, assim, de todas as mulheres?
Acto de loucura momentânea? Seguramente será essa a alegação da defesa… Mas a verdade é que o gesto criminoso encerra em si um problema maior: a cultura obscurantista que domina a mente do homem médio que, resultante de uma educação secular de preconceitos e lugares comuns, vê a mulher como a serva fiel, o objecto do seu desejo e a depositária de todas as suas frustrações e recalcamentos – e não a companheira para, lado a lado, percorrerem uma vida comum.
Todos os homens são assim? Seguramente que não, mas não é por acaso que – como é sabido – boa parte dos homens cabo-verdianos se dedicam, ao longo de uma vida, a fazer filhos de ilha em ilha e, não raras vezes, de continente em continente - e na maior parte dos casos deixam os frutos de amores ocasionais entregues ao cuidado das mães e avós. Não se interessam pela educação dos filhos, não contribuem para o seu sustento e, também não raras vezes, só regressam para fazer mais filhos e/ou para serem “muito homens” a seviciar e espancar as mães das crianças.
A violência doméstica é um problema em todo o mundo, não é só uma doença cabo-verdiana. Porém, esta apetência para a cobrição inter-lhas ou inter-continental é uma realidade específica de Cabo Verde que, não sendo cuidada a tempo, poderá vir a constituir problemas insanáveis para uma sociedade que começa a emergir como órfã de pais vivos.
O ser humano tem uma característica única no universo animal: é o macho que escolhe [ou pensa escolher] a fêmea, remetendo-a a um papel subalterno. No resto do reino animal são as fêmeas que escolhem o macho e são elas a ter o papel dominante. Embora, em muitos casos, pareça haver na sociedade cabo-verdiana essa predominância feminina, se percorrermos as ruas e olharmos com a atenção de quem vê, são as mulheres que ganham suado o sustento dos filhos, inventando pequenos negócios, para além do trabalho doméstico, enquanto boa parte dos homens se arrastam pelas ruas remoendo inúteis os efeitos “inspiradores” do último grogue e, cobardemente, magicando a próxima tareia que, de algum modo, possa colmatar a sua insegurança e as suas frustrações.
**ANTÓNIO ALTE PINHO, jornalista, privado.apinho@gmail.com
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