terça-feira, 3 de maio de 2011

A CRIAÇÃO DE UM ESTADO: O SUDÃO DO SUL




LUCAS D’NILLO S. SOUSA - MUNDORAMA

Em fevereiro último foi anunciada a criação do Sudão do Sul após aprovação de 98% em referendo realizado no país. Em guerra civil por mais de cinco décadas, a região, de maioria cristã-animista, demandava autonomia da região norte, de maioria muçulmana, alegando receber menos recursos e investimentos. Os conflitos persistentes no país têm chamado atenção da comunidade internacional para resolução da questão. É, todavia, problemática a ingerência no país e a criação de um novo Estado no continente africano.

Pode-se ver o caso sudanês sob dois pontos principais: o primeiro está relacionado ao princípio da autodeterminação dos povos, desdobrada em defesa da soberania sudanesa e em demanda por autogoverno do Sul, que contradiz a doutrina uti possidetis juris, a qual define que antigos limites administrativos coloniais seriam mantidos para após a independência dos países. O segundo está relacionado às condições para formação de um novo Estado: existência de coesão entre grupos em identificação de uma nacionalidade, organização política, social e econômica mínimas para sua existência.

As divergências entre as regiões norte e sul do país possuem raízes anteriores à independência em 1956 das autoridades britânicas e egípcias. O sul recebeu mais influência da África meridional, tendo maioria cristã e animista. O norte muçulmano recebeu mais influência dos países árabes. Poucos anos após a independência, o país entrou em guerra civil e, desde então, teve poucos momentos de estabilidade. Mesmo que a região sul tenha ganho maior autonomia com o acordo de paz Addis Ababa em 1972, o conflito perdurou por décadas. A polarização entre as duas regiões ganhou consistência com formação de movimentos armados e políticos de oposição, por exemplo, o Partido Nacional do Congresso, apoiado por Cartum na região norte, e Movimento/Exército de Libertação do Povo Sudanês, apoiado por Juba na região sul.

Omar al-Bashir assumiu a presidência em 1993 e manteve posição de manter a integridade territorial. Para tanto, o líder utilizou de meios violentos como apoio a milícias para repressão, sendo o exemplo mais conhecido o apoio aos Janjaweed no genocídio em Darfur, levando ao mandado de prisão de Bashir em 2007 por grave violação de direitos humanos de acordo com o Tribunal Penal Internacional.

Há, ainda, motivos que fortalecem o conflito. O território sudanês conta com alta diversidade étnica, dificultando a coesão e incentivando a fragmentação territorial. A descoberta de poços de petróleo no país em 1978 intensificou o conflito de interesses. A demarcação da fronteira entre Norte e Sul ou a localização de regiões, como Abyei, são dificultadas. Ainda, a independência do sul estimula fragmentação de outras regiões do país, impulsionando, desta maneira, mais desordem.

Desta maneira, a defesa da soberania sudanesa em oposição à maior autonomia das regiões do país perpetuaram conflitos que intimidaram a comunidade internacional. A longa duração dos embates somada a graves violações de direitos humanos e transbordamentos significativos, como elevado número de refugiados, levaram agentes humanitários, organizações internacionais e organizações não-governamentais em atuar no contexto sudanês. Bashir, todavia, demonstrou resistência em receber assistência humanitária, alegando ingerência em assuntos internos. A pressão internacional, porém, levou o líder a acolhê-la, ocorrendo envio de duas operações de paz, uma conjunta entre as Nações Unidas e a União Africana em relação a Darfur (UNAMID); outra das Nações Unidas para o Sudão (UNMIS), após o Acordo de Naivasha em 2005.

O referendo para separação do país foi, em grande medida, desenvolvido por esforços da comunidade internacional. Questiona-se se a contínua ingerência no país a ponto de provocar sua separação não violou a soberania de Cartum e se os povos do sul apresentavam coesão suficiente para sua autodeterminação.  O artigo 1º do Capítulo I da Carta das Nações Unidas define como objetivo fundamental da organização: “desenvolver relações amistosas entre as nações, baseadas no respeito do princípio da igualdade de direitos e autodeterminação dos povos, e tomar outras medidas apropriadas para reforçar a paz universal”. O princípio de autodeterminação defende a soberania dos países, mas não é claro em relação aos mecanismos de execução deste princípio e não ampara abertamente a independência dos povos.

Invoca-se a perspectiva realista em Relações Internacionais, a qual defende que Estados são auto-interessados e mantém esferas de influência para manutenção de seu poder na seara internacional. Desta maneira, a fomentação da independência do país viria, em grande medida, de interesses de países como China e Estados Unidos que mantêm investimentos no país e estão vinculados à extração de petróleo sudanesa, lhes preocupando, portanto, a estabilidade da região e o aumento de suas influências.

Utilizando-se de uma perspectiva idealista das Relações Internacionais, que argumenta a necessidade de proteção de valores universais, o envolvimento das Nações Unidas no país seria justificado pela devida responsabilidade em proteger direitos imperativos, jus cogens, e evitar a violação contínua de direitos humanos por parte do Governo do Sudão. Desta maneira, o Sudão do Sul teria obtido sua independência de forma justa e historicamente justificada de acordo com a reivindicação de seu povo, cabendo ao norte respeitar a autonomia do país.

É, no entanto, importante ter em mente uma posição intermediária ao defender que, apesar das esferas de influência na região enfatizada pelos realistas e a defesa da soberania do país, a severidade dos conflitos persistentes tornava insustentável o status quo do predomínio de Cartum, enfatizando a defesa idealista. Não é suficiente, porém, justificar apenas a separação ou não da região sul sudanesa. Dando ênfase ao desenvolvimento de condições mínimas para sobrevivência, é imprescindível refletir acerca das atuais condições estruturais do Sudão do Sul e, portanto, sua efetiva criação enquanto Estado.

É interessante observar que apesar de muitas regiões reivindicadoras de autonomia apresentarem desenvolvimento suficiente para se tornar um novo Estado, como ocorre na Espanha ou Canadá, o Sudão do Sul nasce como Estado, mas sem estrutura política, econômica e social para tanto. O caráter sui generis do Sudão do Sul é reforçado pela história de conflitos, a violação maciça de direitos humanos, pelos interesses ali existentes e mesmo pela pressão sobre Bashir por parte da comunidade internacional.

Independentemente da perspectiva que se adote, é importante ver que os conflitos se mantêm e há diversas questões pendentes entre ambos os países, que demandarão cooperação. Os dutos de escoamento de petróleo, a localização de Abyei, a demarcação das fronteiras, definição cidadanias são exemplos. A perpetuação do conflito dificulta o desenvolvimento econômico do país, mantendo desigualdades sociais com falta de acesso a recursos básicos para sobrevivência.

Cabe ao Governo do Sudão do Sul, com base principal no Movimento/Exército de Libertação do Povo Sudanês, criar uma unidade nacional, instituições políticas e meios de desenvolvimento econômico de longo prazo para que o país fuga do estigma de Estado falido. Em curto prazo, resolver os conflitos, mesmo que pontuais, e prover condições mínimas para sobrevivência de sua população serão essenciais para que a existência do país se sustente.

**Lucas D’Nillo S. Sousa é membro do Programa de Educação Tutorial em Relações Internacionais da Universidade de Brasília – PET-REL e do Laboratório de Análise em Relações Internacionais – LARI (lucasdnillo@gmail.com)

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