Quando chegar o dia 5 de Junho, os cidadãos portugueses vão ser chamados a eleger o poder legislativo. Mas, salvo qualquer surpresa, o verdadeiro poder de legislar terá já sido entregue, por vários anos, ao Fundo Monetário Internacional (FMI) e ao Fundo Europeu de Estabilização Financeira (FEEF). Este rumo era previsível a partir do momento em que o poder político, pressionado pelo poder financeiro, enveredou pelas medidas austeritárias. Mais previsível ainda se tornou quando o governo e todo o arco da austeridade, reagindo à escalada da pressão transformada em sequestro, convidaram o sequestrador a assumir as rédeas da governação.
A crónica deste sequestro da democracia era anunciada desde que, com a mais recente crise internacional, a especulação se virou para as dívidas dos Estados periféricos da Zona Euro, com economias mais vulneráveis. Só a construção de entendimentos entre esses países periféricos, acompanhada pela recusa, no plano nacional, de transferir para os cidadãos o pagamento de uma crise originada na esfera financeira e na captura dos recursos públicos pelos interesses privados, poderia ter permitido trilhar um caminho alternativo. Aqui chegados, há quem considere que um cenário possível é ficar à espera da degradação da situação económica e social, até se atingir colectivamente o fundo do poço − uns quantos porque beneficiam directa e indirectamente dessa degradação; muitos outros apenas por desconhecimento, inércia ou profundo desalento.
Mas para quem não se revê nessa postura, ou deseje ganhar ânimo para dela sair, só o fortalecimento de iniciativas e movimentos sociais, com a diversidade de configurações que os cidadãos quiserem e forem capazes de lhe imprimir (da rua e locais de trabalho às redes sociais e cabinas de voto), poderá abrir a esperança de vermos o poder político, por pressão ou convicção, assumir a recusa da austeridade e da intervenção externa. E de o vermos enveredar por uma resposta à crise que passe por políticas públicas de revitalização da economia e do emprego, de redistribuição de rendimentos e de aposta nos serviços públicos e no Estado social, que são as bases de uma sociedade decente e de uma economia moral.
Sem isso, qualquer «união» é vazia e cega, seja ela europeia ou nacional. Os consensos que infernizam a vida da maioria das pessoas tenderão a resultar em conflitos. Em vez de coesão, essas «uniões» e «consensos» só aumentam a corrosão, seja ela social ou territorial. Sabem-no bem os gregos e os irlandeses − como antes deles tantos latino-americanos e leste-europeus −, porque têm um ligeiro avanço em relação a Portugal no «salvamento» que lhes foi imposto. Sabem que o «salvamento» não melhora nenhum dos seus verdadeiros problemas, mas continua a agravar muitos outros.
Estas experiências, já impostas em diferentes tempos e espaços, deviam fazer com que se aprendesse o que parece ser óbvio: o choque neoliberal, apesar da sua retórica salvítica, é desastroso para as economias e para as sociedades. Em vez disso, prefere-se ocupar o espaço público com o matraquear das mesmas ideias e receitas neoliberais, com a cumplicidade de um poder político que ergue a estranha bandeira da impotência ou da iníqua defesa do reforço dos privilégios. Ao que se junta a conivência de uma comunicação social que está mais atenta ao «pluralismo de opiniões» dentro da famosa troika do que dentro da sociedade. Eis algumas dessas ideias e receitas que são repetidas à saciedade.
Uma delas é que, se é certo que o plano para Portugal vai ser mais duro do que noutros países da União Europeia, isso acontece porque o FMI/FEEF devia ter sido chamado mais cedo. É claro que, se tivesse sido chamado mais cedo, o argumento mostraria a sua plasticidade: para funcionar, basta que a culpa seja sempre do que aconteceu antes do início da intervenção externa.
Uma outra ideia é a de que a recapitalização do sistema bancário é fundamental para a revitalização da economia e que é por isso que o sector ficará com uma parte significativa, a seguir ao pagamento da dívida, da «ajuda» a conceder. Pouco importa, portanto, que tenha sido o sistema financeiro a ter originado a crise e que, passados quatro anos, continue a não se fazer rigorosamente nada para a sua reforma e regulação. O que é preciso é conseguir impor todos os sacrifícios aos contribuintes para alimentar chorudos lucros bancários, se possível conseguindo a proeza de não ter de ouvir ninguém chamar a esse resgate uma «ajuda interna» − na verdade, ela é praticada pelos Estados, através dos contribuintes, e é destinada a salvar o sistema financeiro.
Outra ainda é a ideia de que o Estado social é necessariamente «gordo», «monstruoso», «ineficaz», precisando por isso de uma cura que o torne «ágil» e «moderno»… mas não se pode dizer muito sobre cada uma das reformas sem estudar tudo muito bem, pois elas podem ser duras para alguns sectores. É certo que estas ideias e medidas, puramente ideológicas, esquecem qualquer consideração crítica ou evidência empírica sobre uma pretensa maior eficiência dos privados. É certo também que ignoram de forma consciente o papel central que a associação entre fiscalidade progressiva e serviços públicos, que devem ser universais e gratuitos, desempenha na lógica subjacente ao contrato social em que assentam as democracias. Mas, mais do que isso, estas ideias encobrem o que está de facto em curso, aliás há várias décadas, e que é um programa de contínua extensão do projecto neoliberal, no quadro do qual a disputa do Estado (não o seu desaparecimento) e a apropriação dos recursos públicos são peças centrais para a formação dos lucros das grandes empresas e para a alimentação de todos os rentismos.
Uma última ideia é a de que a «ajuda» não vai ter grandes resultados ao nível da diminuição do desemprego ou da recuperação da economia e que se calhar também não vai permitir resolver o problema do pagamento da dívida, apesar de teoricamente ser esse o objectivo de quem «chamou» o FMI/FEEP. Mas também, apressam-se a acrescentar, tendo o pedido chegado tão tarde, tendo o país um sistema bancário tão descapitalizado e um Estado social tão «gordo»… não esperavam milagres, não é? Pois, milagres não. Só seria de esperar que não se cometesse o erro brutal de, num país há muito devastado por crescentes desigualdades e desprotecções sociais, e cada vez mais condenado por uma União Europeia que despreza a coesão entre os seus membros, não se piorasse a situação da esmagadora maioria dos cidadãos recorrendo a ajudas que matam.
Até às eleições de 5 de Junho, as informações que formos tendo sobre o reforço da austeridade no quadro da intervenção externa vão ter em comum o facto de anunciarem como inevitável uma progressiva e rápida perda de autonomia por parte dos poderes públicos, bem como de cada cidadão, na sua vida profissional e pessoal. A austeridade, que começou por ser sentida sobretudo como quantitativa, vai agora mostrar a sua dimensão qualitativa, limitando a capacidade dos sujeitos (individuais ou colectivos) para fazerem escolhas, para serem responsáveis e responsabilizados, em suma, para se construírem e serem reconhecidos como sujeitos autónomos e livres. Nunca um Maio, um maduro Maio, fez tanta falta.
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