A SEMANA
FILOMENA MARTINS – DIÁRIO DE NOTÍCIAS, opinião
Primeiro estranha-se, depois entranha-se. Roubo a frase com que Fernando Pessoa caracterizou o sabor da Coca-Cola, para a aplicar a Portugal, onde já nada nos inquieta. Vou só a factos desta semana.
Primeiro o PSD acusou o Governo de estar a fazer "nomeações ocultas", contratando quadros e dando ordens para que essas contratações não fossem publicadas em Diário da República. O "caso" foi lançado à hora dos telejornais, durou essa noite e o dia seguinte de campanha, motivou ditos e contraditos, umas série de atoardas e depois... morreu. Ninguém explicou, em definitivo e sem margem para mais suspeitas, se houve ou não as ditas nomeações escondidas, se as houve o que vai acontecer aos nomeados e se tudo o que aconteceu foi legal. Daqui a meses ou anos, lá se contabilizarão as nomeações feitas em gestão, a colocação de nomes de amigos neste ou naquele cargo, mas ninguém faz absolutamente nada que isto não se repita governo após governo. Estranhou-se primeiro, entranhou-se depois, e não se fala mais disso.
Depois a Unidade Técnica de Apoio Orçamental concluiu que o Governo adiou pagamentos de 205,9 milhões de euros para poder apresentar o relatório da execução orçamental do primeiro trimestre deste ano muito mais cor-de-rosa do que ele é na realidade. Mais uma vez o tema marcou um dos dias da campanha, gerou troca de acusações e depois... morreu. Ninguém fez com que o primeiro-ministro se desculpasse pelo feito que anunciara uma semana antes, ninguém se apressou a mostrar os números verdadeiros, ninguém recordou sequer que a União Europeia obrigou a corrigir o défice por causa do oportuno esquecimento de contabilizar uns certos dados obrigatórios desde meio do ano. Daqui a uns meses, seja qual for o Executivo, lá se irá de novo usar a contabilidade criativa que mais jeito der, torturar os números até que eles se ajeitam aos desejos de quem governar. Estranha-se num dia, entranha--se no seguinte e depois tudo se esquece.
E soube-se ainda que:
Almerindo Marques, que saiu recentemente da empresa pública Estradas de Portugal, acaba de saltar para a privada Opway, que opera na mesma área das obras públicas e com quem antes mantinha negócios. Ele acha que daí não vem mal ao mundo pois "quem não deve não teme", mas espero que aceite também que são estes saltos de gestores públicos para os melhores cargos privados que mais suspeitas e desconfianças geram aos cidadãos.
Nuno Félix, um assessor de imprensa do ministro Jorge Lacão, ex-candidato autárquico socialista, ganha por mês quase tanto como o ministro. O próprio revela que tem um salário igual ao dos adjuntos ministeriais e sustenta que o seu salário se justifica, mas espero que aceite também que são casos como o seu que levaram à criação da denominação "boys" e de tudo o que ela representa.
São todos estes casos, e outros que tais, sem que ninguém tenha feito nada para que não se repetissem, que nos trouxeram até aqui. Somos o tal país de brandos costumes que pouco se indigna e tudo aceita. Mesmo que estranhe, entranha e segue cantando e rindo. A factura teria de chegar. Mas, mesmo quando já percebemos o que temos a pagar, continuamos a beber da mesma mistela. A cirrose é certa. E mata.
Posicionamentos
- Primeiro foi António Costa a deixar claro que o PS tem vida para além de José Sócrates e que o partido não esgota no actual líder. Depois Francisco Assis a elogiar Passos Coelho. Ontem foi António José Seguro a discursar sobre os socialistas sem nunca nomear o primeiro-ministro demissionário. E no PSD não pode deixar de ter leitura política que Rui Rio tenha recebido Paulo Portas muito antes de se encontrar com Passos Coelho. Com a vitória de dia 5 completamente indefinida, agitam-se já os bastidores dos dois principais partidos. Há muita gente a posicionar-se e a ficar de prevenção para o que der e vier.
Contradições
- Independentemente do que se possa pensar da estratégia política de Passos Coelho em trazer para a ordem do dia o tema do aborto, há duas coisas que devem ser ditas. A primeira é que os temas sociais e de valores podem e devem ser debatidos nesta campanha, já que sobre os económico-financeiros todos sabemos que o que vale são as ordens da troika. A segunda é que esquerda que agora argumenta que há coisas muito mais graves a preocupar o País foi a mesma que achou que devia aprovar e discutir temas fracturantes em vez de fazer face à crise que se instalava.
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