ADRIANO MOREIRA – DIÁRIO DE NOTÍCIAS, opinião
A evolução do processo de intervenção da ONU nos problemas mundiais deu sinais suficientes de que a formulação jurídica da sua estrutura e funções foi mais de uma vez desafiada, e desfeiteada, pela realidade emergente. O unilateralismo republicano dos EUA já seria alarme suficiente nesse sentido, mas também noutros domínios, designadamente mais afastados das questões militares, mas não menos agressivos da igualdade dos Estados, se encontram manifestações a exigirem atenção e remédio.
Quando se fala em remédio é pressupondo que os objectivos do conceito estratégico da organização continuam a ter validade, ainda que a estrutura de intervenção se mostre desadequada. O fenómeno do G-20, que progressivamente se perfila como um G-2 (EUA - China) mais 18, emergiu sem cobertura estatutária internacional, e os factos estão a demonstrar que a sua criatividade não é suficiente para regular a vida financeira e económica mundial, em que os interesses sectoriais, de entidades sem qualquer função ou subordinação governativa, implantam uma espécie de regionalização de poderes sem fronteiras, e também sem limites éticos, em busca de triunfos na competição que decorre na arena chamada mercado.
A regionalização política, com motivações plurais, mas, tal como acontece com o projecto europeu, assumindo que o modelo das soberanias absolutas foi desafiado e ultrapassado nas suas capacidades, procurou dar resposta consolidada à indispensável existência de poderes políticos que assegurem a defesa, a justiça, o desenvolvimento sustentado, respeitando os paradigmas que as comunidades nacionais, que se unem, partilham. O pensamento e grandeza de visão dos que iniciaram o movimento europeu depois da guerra, prudentes na política dos pequenos passos, não esqueceram a realidade mais vasta que é o Ocidente, não esqueceram os desastres sofridos, mas fizeram de uma visão comum de futuro em paz um conceito estratégico participado. Por esse tempo, que foi de exemplo e de esperança, a reunião inicial dos Estados, que manteriam aberta a organização a novas adesões, alimentou a imagem, recolhida de Popper, de que todos os cisnes eram brancos. E durante anos os órgãos de execução do projecto foram-se aperfeiçoando, funcionaram com regularidade operante, tiveram por meio século a consciente perspectiva de que a segurança militar era indispensável e não dispensava ela os EUA.
A queda do Muro parece ter contribuído para que a visão do futuro também sofresse abalos, e apareceram os sintomas de que o velho demónio interior europeu do Directório começava a recuperar da sonolência, mostrando-se mais activo logo que a crise bateu com força às portas da memória. Foi clara a localização da sede das inquietações sobre o desenvolvimento do processo, com governos a moverem-se fora das sedes da União, um exemplo difuso em que logo se evidenciaram a Alemanha e a França. Mas sobretudo a primeira, com a antropologia inovadora da chanceler a distinguir o Norte, afirmado rico e virtuoso, do Sul pobre, e sem aplicação ao trabalho, omitindo que sem a solidariedade de todos, incluindo os EUA, não estaria em condições de elaborar o discurso. Foi a grandeza dos agredidos que assegurou a defesa ocidental, e a reunificação da Alemanha, depois de lhe viabilizar a reconstrução.
Por muito que se pretenda desvalorizar a previsão, a realidade é que chega um cisne negro para reduzir à inutilidade a convicção de que todos os cisnes são brancos, uma advertência a que foram poupados os fundadores do movimento europeu. O facto é que a fronteira da pobreza ultrapassou o Mediterrâneo, dando uma nova definição geográfica ao Brandt Report de 1980, que então considerava que a falência do desenvolvimento económico era uma ameaça maior para a segurança do que o conflito Leste-Oeste. O que não lhe ocorreu foi que a geografia da pobreza mudasse, e que a mudança pudesse libertar os cisnes negros.
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