Vencer a guerra pode ser mais fácil do que administrar a paz. Comunidade internacional está preocupada que os rebeldes fracassem em preencher o vácuo político criado pela partida de Kadafi.
É improvável que o fim da luta pela paz, segurança e estabilidade na Líbia coincida com a queda do regime de Muammar Kadafi. Para o Conselho Nacional de Transição (CNT) pode ser mesmo tão difícil conquistar a paz quanto tem sido vencer a guerra.
Com desconfiança de longa data e discórdia quanto à divisão dos papéis dentro do poder ameaçando esfacelar as frouxamente aglutinadas facções rebeldes, circula até o temor de que as salvas de tiros comemorativas em breve passem a ser redirecionadas contra os rivais, na briga pelo controle sobre os destroços da Líbia pós-Kadafi.
No momento, o CNT, reconhecido por 32 países como representante único da Líbia, não dispõe de um gabinete de governo. O último foi dissolvido por Mustafa Abdul Jalil, um juiz que renunciou ao cargo de ministro da Justiça, após o início do levante, e agora é presidente do conselho de transição. A causa da dissolução foi o fracasso das investigações em torno do assassinato do comandante rebelde Abdul Fatah Younis, em julho.
O caso Younis
A misteriosa morte do oficial do Exército e ex-ministro do Interior da Líbia abriu profundas fendas na já fragmentada rebelião. Younis fora um braço direito de Kadafi, e mais tarde um dos mais proeminentes desertores do regime. As facções rivais lançaram-se acusações mútuas, e Jalil aparentemente mostrou-se pouco cooperativo ao ser confrontado com perguntas sobre o papel de seu governo no assassinato.
"Existem discórdias entre os insurgentes que desertaram do regime Kadafi e os que nunca estiveram integrados nele", explicou à Deutsche Welle Kristian Ulrichsen, especialista no Norte da África e Oriente Médio pela London School of Economics. "O homicídio de Younis em julho expôs as fissuras e a desconfiança básica entre esses dois grupos."
O crime exacerbou a confusão sobre quem recebe ordens de quem, a natureza caótica das operações e as ineficazes estruturas de comando dentro do movimento rebelde – as quais frustraram muitas de suas primeiras ofensivas. Ele também acirrou os atritos e difamações entre os grupos rivais, muitos dos quais rechaçam a alegação do CNT de que seria o governo de todos os líbios.
Exigências de recompensa
Essa divergência é um dos principais problemas que o Conselho deverá enfrentar, caso assuma o poder após a queda de Kadafi. Enquanto Jalil apresenta o CNT como única voz verdadeira da Líbia livre, tanto para a população nacional quanto para a comunidade internacional, este é um ponto que causa irritação entre os insurgentes de Misrata, terceira maior cidade líbia, assim como entre os dos Montes Nafusa.
Em Misrata, os rebeldes acusam o CNT de ser desorganizado e extremamente ineficiente durante os combates. A tal ponto que afirmaram à imprensa que não mais receberão ordens do governo de transição.
Um outro fator igualmente debilita o controle de Jalil sobre a situação nacional: os oposicionistas de Misrata e dos Montes Nafusa foram os principais responsáveis pelo avanço sobre a capital, através das cidades estrategicamente importantes de Zawiya, Garyan e Zlitan – e isto sem recorrer à ajuda das forças do leste, comandadas por Jalil.
Caso esses grupos consigam capturar Tripoli, é possível que, no futuro, venham a pressionar o CNT e seu líder, exigindo papéis de destaque no governo da nova Líbia, como recompensa por seus atos de heroísmo.
População sob alta pressão
Além de atender às demandas de seus aliados, o CNT terá que aplacar e policiar uma sociedade irada, subitamente liberada da opressão, muitas vezes brutal, que sofreu nos últimos 42 anos. Ao enfrentar essa tarefa, o governo tem que, acima de tudo, evitar repetir os erros do passado.
"Será um gigantesco desafio reinstaurar a ordem pública, sem recorrer à força indiscriminada, nem cair na tentação de perpetrar atos de vingança contra os sequazes de Kadafi", antecipou à Deutsche Welle Thorsten Benner, especialista em segurança do Instituto Global de Políticas Públicas (GPPI em inglês) de Berlim.
"Há um enorme perigo de que o novo governo empregue os lucros com o petróleo para servir a seus próprios camaradas, em vez de à massa da população", acrescentou. "Também é enorme a tentação de encenar processos sensacionalistas, em vez de lentamente fundar um sistema judiciário independente."
"Roadmap" da democracia
Embora a constituição de qualquer governo pós-Kadafi, por mais que seja fragmentado, continue sendo uma tarefa complexa, o CNT parece dispor de planos, pelo menos de curto prazo. Estes incluem assegurar que o fornecimento e os serviços públicos sigam operando, depois de o controle haver mudado de mãos; assim como a apresentação de um roteiro contendo sua versão da passagem da Líbia à democracia, num prazo de 20 meses.
Outros tópicos são a transferência da liderança da cidadela rebelde Benghazi para Trípoli, num prazo de 30 dias a partir da ocupação da capital; e a ampliação do Conselho Nacional de Transição, tornando-o mais inclusivo, com a integração de representantes de todo o país. O governo de transição prevê ainda, num prazo de oito meses, a realização de eleições para um congresso nacional interino, contando 200 membros.
Apesar desse plano, o receio na Líbia e no restante do mundo é o CNT estar tão fragmentado e dividido em facções, que não esteja sequer apto a decidir quem assumirá o poder executivo para supervisionar o roadmap da democratização. Para muitos, Jalil é incapaz de unificar o país, já que não consegue nem mesmo harmonizar sua própria administração.
Lição negativa do Iraque
A comunidade internacional está seriamente preocupada que os rebeldes venham a vencer a guerra, mas fracassem em preencher o vácuo político criado pela partida de Kadafi, expondo a Líbia a rixas e rivalidades sectárias – como as que sucederam à remoção de Saddam Hussein do poder, no Iraque. "Novas explosões de violência são um perigo, em especial se elementos ligados ao novo regime se sentirem excluídos da ordem política pós-Kadafi", alerta Kristian Ulrichsen.
Dentro de tal cenário, a Otan corre o risco de se encontrar no papel imposto aos Estados Unidos: um poder militar responsável – no caso da Líbia, até certo ponto – pela deposição de um ditador, e "atolado" em meio à guerra civil que ajudou a criar. Há temores que a Organização do Tratado do Atlântico Norte fique atada a outro compromisso complicado e de longo termo, como no Afeganistão.
"A Otan não pode se colocar na posição de ter que assumir partido dentro do conflito interno, como acabou sendo forçada a fazer no conflito do Afeganistão", diz o pesquisador da London School of Economics. Os resultados naquele país asiático "demonstram que isso mina a possibilidade de alcançar qualquer tipo de ordem política duradoura, e deve-se esperar que seja evitado na Líbia".
Limites do mandato da Otan
Thorsten Benner, do GPPI, acentua que é vital a Aliança Atlântica reconhecer que estabilização política não é sua especialidade.
"A Otan teve um mandato da ONU muito restrito para a Líbia, o qual extrapolou sistematicamente. Portanto, ela deve agora reduzir seu envolvimento, deixando que a ONU e organizações regionais como a União Africana e a União Europeia assumam o leme na frente internacional."
Num mundo ideal, acrescenta, os líbios deveriam tomar seu destino nas próprias mãos, com o aconselhamento da comunidade internacional. "Organizações globais e regionais podem oferecer assessoria em questões de formação de Estado, através de uma missão política. Embora não se deva contar que um novo governo movido pela riqueza do petróleo venha a ser um bom ouvinte", comenta o especialista em segurança.
Autoria: Nick Amies (av) - Revisão: Carlos Albuquerque
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