segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Cabo Verde: O REFORÇO DA DEMOCRACIA E O DESÍGNIO DO DESENVOLVIMENTO


JCF não é nenhuma invenção do marketing político

LIBERAL

Jorge Carlos Fonseca em entrevista exclusiva (1)

Em entrevista a Liberal e à revista portuguesa Diplomática, o Presidente da República eleito aborda as grandes questões nacionais e fala-nos do seu percurso de vida enquanto cidadão e militante de causas. A quatro dias da tomada de posse, Jorge Carlos Fonseca recebeu-nos em sua casa na Achada de Santo António.

Praia, 5 de Agosto – O discreto prédio de classe média, na Achada de Santo António, não denuncia que ali reside o Presidente da República. Apenas o Mercedes, de modelo já antigo e com matrícula do Estado, poderá dar luz sobre a existência de ilustre locatário.

É ele que nos abre a porta de casa, com um sorriso rasgado e trajando informalmente. Na sala familiar onde impera o bom gosto e o conforto, não há, porém, nada de ostensivo, nenhum sinal de luxo dispensável. A informalidade é circunstância natural deste homem de 60 anos, que revela uma surpreendente juventude. Na intimidade de sua casa, Jorge Carlos Fonseca não destoa da imagem de simpatia e simplicidade que passou na campanha. É um produto genuíno, não é nenhuma invenção do marketing político. E encara este desafio com a mesma determinação e voluntarismo com que se envolveu noutros: a luta contra o colonialismo, o combate pela liberdade e democracia, a sua vida académica e o seu percurso de intelectual, poeta e passageiro de utopias…

Esta é a primeira parte de uma entrevista que, até quarta-feira, iremos publicar diariamente. E é resultado de uma primeira parceria editorial com a revista Diplomática, publicada em Portugal mas também distribuída em Luanda.

O SEU SLOGAN ELEITORAL, “UM PRESIDENTE JUNTO DAS PESSOAS, DE QUE FORMA É QUE O PENSA MATERIALIZAR?

A minha ideia é, para que valha a pena ser Presidente da República – mesmo no nosso sistema -, que o PR seja uma pessoa que ouça os cidadãos, que conheça os problemas, ausculte as iniciativas da sociedade civil, de forma que, conhecendo os problemas – e no âmbito dos poderes que tem -, possa ajudar a resolvê-los. Se não conhecer os problemas dos jovens, como eles vêem o País, se não conhecer as preocupações dos empresários, os problemas do Ensino, as dificuldades dos trabalhadores, se não ouvir os sindicatos, se não auscultar os empresários, não pode ter a base e o fundamento para que, em diálogo com o Governo e os poderes públicos, possa dar uma contribuição para resolver os problemas. Sejam eles da Economia, dos impostos, da juventude, do ensino, da segurança, da Justiça… O Presidente da República, tem de estar ao pé dos interessados, conhecer os problemas, os anseios, fazer o diagnóstico e ter opinião que seja uma mais-valia para a governação.

HÁ UMA ESTRUTURA, LIGADA À PRESIDÊNCIA, QUE É O CONSELHO DA REPÚBLICA. MAS, AO QUE PARECE – E, PELO MENOS, NESTE ÚLTIMO MANDATO DO AINDA PR -, NÃO TEVE NENHUMA VISIBILIDADE PARTICULAR…

Sim, ao que sei, poucas vezes terá reunido, a não ser naqueles situações em que era obrigatório, como marcar a data das eleições. Mas, como órgão de consulta do Presidente, no meu entendimento, penso que é um órgão que deverá reunir mais vezes. O Presidente deve ouvi-lo sempre que possível e necessário. É um conselho que integra titulares de órgãos de soberania, mas também integra cidadãos, alguns deles designados pelo Presidente da República. E penso que não deve reunir só por crises políticas ou para marcar eleições, tem de reunir mais vezes.

COLOQUEI-LHE A QUESTÃO, NA MEDIDA EM QUE O CONSELHO DA REPÚBLICA CASA BEM COM ESSA IDEIA DE “UM PRESIDENTE JUNTO DAS PESSOAS”.

Sim, sim, pode fazer a ponte. É evidente que não pode ser um órgão que reúna em permanência, mas sempre que precisar de ouvir opiniões sobre uma questão muito relevante da vida nacional, na política, na Economia, na segurança, na Justiça… é bom ouvir um órgão plural que represente segmentos diferentes da política e da sociedade cabo-verdiana.

O SENHOR PRESIDENTE TEM O RARO PRIVILÉGIO DE TER ESTADO LIGADO AOS DOIS GRANDES DESÍGNIOS DA NAÇÃO CABO-VERDIANA, NOMEADAMENTE, A LUTA CONTRA O COLONIALISMO E PELA INDEPENDÊNCIA, E A LUTA PELA LIBERDADE E A DEMOCRACIA. E VAI TOMAR POSSE NUMA ALTURA EM QUE O GRANDE DEBATE SE COLOCA EM TORNO DAS QUESTÕES DO DESENVOLVIMENTO E DO PROGRESSO SOCIAL. E ISSO É MUITO RELEVANTE, NA MEDIDA EM QUE PODE, TAMBÉM, FAZER A PONTE ENTRE ESTES TRÊS MOMENTOS HISTÓRICOS.

Creio que é uma oportunidade boa. Estive ligado à luta pela independência, que terá sido muito modesta – era um jovem de 17 anos -, mas de qualquer modo uma contribuição que passou pela militância no PAIGC até 1979, e que se materializou, após a independência em 1975, numa pequena contribuição como director-geral da Emigração e Serviços Consulares e, posteriormente, secretário-geral do Ministério dos Negócios Estrangeiros. E, depois de 79, foi, em rigor, um trabalho subversivo. Trabalhei com vários grupos contra o regime de partido único, estive ligado a uma coisa chamada GRIS – que teve existência efémera -, integrei os Círculos pela Democracia e, quando era assistente da Faculdade de Direito de Lisboa, trabalhei com jovens estudantes cabo-verdianos que tinham estado, também, neste processo de contestação ao partido único: o Eurico Monteiro, o José Manuel Pinto Monteiro, o Mário Silva, o Arnaldo Silva – que é hoje o bastonário dos advogados -, o ex Procurador-geral, Henrique Monteiro, o Gustavo Araújo – que está em Portugal. E, portanto, era um grupo que eu dirigia mas que tinha ligação com Cabo Verde, sobretudo na Praia e no Mindelo. Tínhamos algumas pontes com figuras como Manuel Faustino.

E, na altura, criamos também a Liga Cabo-verdiana dos Direitos do Homem, que era uma estrutura composta por personalidades, como o advogado Caldeira Marques, que hoje também está em Portugal, mas esteve aqui como juiz do Supremo; o José Tomás Veiga; o Eugénio Inocêncio; o Daniel Lobo; o Gustavo Araújo… Entretanto, fui para Macau, como professor universitário e director da Faculdade de Direito e, pouco depois, dá-se aqui a abertura política. Vim para cá, estive na origem do MpD, pertenci à sua primeira comissão política, que na altura se chamava Comissão Executiva Nacional, ganhamos as eleições, estive no Governo como ministro dos Negócios Estrangeiros. Aconteceu tudo muito rápido, essa ligação à independência e à democracia.

Mas, voltando à sua pergunta, no que respeita às questões do desenvolvimento, eu venho trabalhando nesse sentido desde a independência. Mas percebo a sua ideia quanto ao desígnio do país arrancar definitivamente nesse sentido. Deixar de fazer só coisas bonitas e fazer com que o País dê o salto qualitativo…

ÀS VEZES, “SALTAR DE PÁRA-QUEDAS” NUM PAÍS TEM AS SUAS VANTAGENS, PORQUE SE FICA COM UMA IDEIA MAIS OBJECTIVA. E A IDEIA QUE TENHO, EM TERMOS DE DESENVOLVIMENTO, É QUE HÁ UMA ESPÉCIE DE CORTINA DE FUMO QUE NÃO CORRESPONDE A UMA SITUAÇÃO REAL.

Nós, de facto, aparecemos muito bem posicionados em listas, rankings, mesmo em termos de liberdade de imprensa, taxas de crescimento, taxas de mortalidade infantil, de equidade do género… Mas não devemos ficar muito satisfeitos por sermos os primeiros confrontados com países que estão mal, quando comparados com outros países africanos. Isso é pouco, acho que Cabo Verde deve ter condições para ser mais ambicioso. E, em vez de nos compararmos a países africanos que têm muitos problemas, devemos comparar-nos com países desenvolvidos. Creio que o grande desígnio é este. E, para isso, gostaria de, quando terminar o meu mandato como Presidente – seja um ou dois -, ter a consciência de haver contribuído para que o País desse um salto. Cabo Verde fez coisas no período pós-independência, promoveu também muitas coisas bonitas no período pós-democracia, mas o País tem de ter um clique. Por exemplo, diz-se que Cabo Verde tem taxas de analfabetismo muito baixas, mesmo se comparadas a alguns países europeus, mas mesmo assim temos muitos analfabetos. Temos muita gente desempregada, temos muita gente inculta. E creio que o desenvolvimento implica bem-estar. Bem-estar material, boas condições de vida, salários dignos, emprego; mas também um bom nível cultural, educação… muito superior ao que temos tido até ao momento.

Naturalmente que isso passa pelos Governos, mas também passa pela sociedade, pelos cabo-verdianos em geral, e também cabe um pouco ao Presidente da República. E, por exemplo, se nos compararmos com as Maurícias ou com as Seychelles, mesmo depois da democracia, nós temos crescido muito menos. E, em vez de nos aproximarmos, estamos a afastar-nos, mesmo se comparados com outros países emergentes. Portanto, os dois grandes desafios neste momento, em Cabo Verde, são consolidar a democracia, afirmá-la, alargá-la, ser uma democracia mais moderna e mais avançada, que comporta mais desenvolvimento, mais bem-estar para a maioria dos cabo-verdianos.

Por exemplo, temos assimetrias regionais inaceitáveis, é como se fôssemos dois países. Temos a Praia, temos o Mindelo, mas depois temos São Nicolau, os Mosteiros, a Brava, Porto Novo, que é um outro país onde o desenvolvimento não chega. Temos um poder local que foi uma conquista importante mas que pouco se tem afirmado nos últimos anos, porque tem sido muito condicionado. Temos ilhas e concelhos periféricos e, portanto, tem que haver uma mudança sob esse ponto de vista.

E O PRESIDENTE DA REPÚBLICA PODE SER O CATALISADOR?

Pode ser referência, pode ser catalisador, pode ser potenciador. Sem sair da esfera das suas funções, sem querer ser Governo, sem pretender ser oposição. Mas o Presidente tem de dialogar com o Governo, mas também com a oposição, porque está em condições de lidar com uns e com outros, mas sobretudo dialogar com a sociedade, com o território que não está nos partidos e que não está no Estado. E sempre que for necessário fazer as pontes, como vai ser preciso no que respeita ao Tribunal Constitucional e ao Provedor de Justiça, à Comissão Nacional de Eleições… pugnar por eleições justas e transparentes. Para isso tudo o Presidente tem que fazer um esforço de aproximação da oposição e do Governo.

Exclusivo Liberal - Diplomática

**Amanhã, leia a segunda parte da entrevista: A SOCIEDADE E OS INTELECTUAIS; OS “ANOS DE FOGO” E A RECONCILIAÇÃO NACIONAL

Ler também:

Saber que:
Documentário em alta definição - “CABRALISTA” JÁ ESTÁ DISPONÍVEL

2 comentários:

Anónimo disse...

Apenas o que interessa ao brasileiro que aqui escreve, é que esse senhor não se sinta no direito de se ENDIVIDAR COM O BRASIL, e querer o perdão da dívida depois, como já ocorreu antes.

Muito do injusto esse comportamento. Se virem com Portugal, QUE TAMBÉM CRIOU VOCÊS!!!

De "irmãos" assim não precisamos.

Anónimo disse...

PERGUNTAS PERTINENTES PARA O PRESIDENTE DE CABO VERDE.

1 ) Cabo Verde foi o primeiro país africano que abrigou um dos mais amplos exercícios militares da NATO em África, imediatamente antes da presença massiva dessa organização no Afeganistão.

2 ) Agora que a OTAN, com suporte do AFRICOM, instala a primeira neo colónia na Líbia, que relações vai Cabo Verde ter com essas organizações, com o CNT da Líbia e com a neo colónia logo após a cosmética do "processo democrático" que os poderosos do petróleo dizem que vão lá desencadear?

3 ) Por que razão Cabo Verde, tendo em conta o seu papel geo estratégico, ao invés dos seus relacionamentos com essas organizações da hegemonia, não privilegia os relacionamentos com os "emergentes", sobretudo o Brasil e a África do Sul, cujas costas abrangem áreas significativas do Atlântico comum?

4 ) Até que ponto o relacionamento com Portugal enquanto membro da NATO e tendo em conta o carácter do actual governo de turno, implica o "emparceiramento", o mercenariato, ou a submissão de Cabo Verde ao "diktat" dessa organização?

Martinho Júnior.

Luanda.

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