MANUEL MARIA CARRILHO – DIÁRIO DE NOTÍCIAS, opinião
Fala-se muito na crise financeira, mas pouco na crise que mais nos condiciona a todos - a da própria democracia. Entusiasmamo-nos com a generalização da democracia no mundo, mas preferimos não olhar para a sua crescente desvitalização, que a tem vindo a tornar nuns casos mais formal, noutros casos mais residual, mas sempre mais impotente.
A democracia possui (histórica, cultural e politicamente) duas dimensões fundamentais e indissociáveis: a liberdade dos cidadãos e o poder da comunidade. A grande força da democracia vem, aliás, da sua capacidade para conjugar estas duas dimensões, transformando as liberdades dos cidadãos em força colectiva, isto é, em acção política capaz de satisfazer as expectativas individuais e de resolver os problemas partilhados.
Nas últimas décadas, esta articulação foi-se perdendo. As exigências relativamente aos direitos individuais continuaram a crescer, mas cada vez mais desligadas de qualquer sentido colectivo. Somos cada vez mais livres e temos cada vez mais direitos, mas esta liberdade contribui cada vez menos para a resolução dos problemas da comunidade.
Vem certamente daqui o generalizado sentimento de impotência dos cidadãos, bem como a sua brutal frustração e "desesperança" com os partidos e os políticos. Estes, infelizmente, não parecem compreender o enfraquecimento da democracia. Pelo contrário, têm-se adaptado docilmente às transformações, tornando-se assim nos melhores "bodes expiatórios" para os cidadãos, nos melhores cúmplices para a comunicação social e nas melhores marionetas para a finança.
A aprovação parlamentar, na semana passada, de legislação sobre o enriquecimento ilícito, que transforma os políticos em suspeitos até prova em contrário, ilustra eloquentemente a inconsciência dos políticos sobre o "circo" que, por muito que se queixem, eles próprios alimentam.
Com este enfraquecimento da capacidade de acção colectiva da nossa democracia corremos o sério risco de ver desaparecer a esperança numa qualquer mudança política. Este risco que só se pode combater através de uma via estreita - que é a de abrir a porta para uma nova forma de fazer política, que alie o conhecimento dos problemas e da sua história à capacidade de formular ideias novas para tentar resolvê-los.
São precisas novas propostas políticas que cortem com interesses instalados, e abram caminho ao futuro pensando os problemas à luz de valores políticos claros e diferenciadores. É o que faz Philippe Aghion num livro acabado de publicar, Répenser l'État - pour une social-démocratie de l'innovation.
Economista, professor em Harvard, Aghion defende que a falta de confiança nos Estados se deve à generalizada percepção da sua incapacidade para garantir o crescimento controlando o défice. E que esta incapacidade só será ultrapassada com um novo modelo de Estado e da sua acção, que, para ser uma efectiva alternativa ao modelo ultraliberal dominante, não se pode limitar a invocar Keynes.
Os tempos mudaram, e as lições da história têm de ser aprendidas. O Estado redistribuidor vai, segundo Aghion, ter de dar lugar a um Estado selectivamente investidor, que aposte na inovação, definindo com a maior precisão e transparência os seus objectivos. Um Estado que proteja contra os novos riscos, nomeadamente os que decorrem da precarização do trabalho e das imprevisíveis "surpresas" macroeconómicas ou financeiras. Um Estado que renove a fiscalidade, atento às boas lições que continuam a vir do Norte da Europa. Um Estado que aposte no aprofundamento da democracia como factor de crescimento colectivo e não só como forma de garantir os direitos individuais.
Precisamos, em suma, de um Estado estratega, que decida cortes e investimentos com base numa visão colectiva, de crescimento e futuro. Infelizmente, calhou- -nos um Governo talhante que corta agora sem critério para emagrecer um Estado que andou a gastar sem sentido.
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