quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Timor-Leste: “Ensino do português como língua oficial implica lutar para que seja veicular”





Entrevista  
Hanna Batoréo, coordenadora do Simpósio dedicado à Língua Portuguesa em Timor-Leste

Hanna Batoréo é docente na Universidade Aberta de Lisboa e foi também a coordenadora do Simpósio dedicado à Língua Portuguesa em Timor-Leste, que teve lugar no território este mês. Em entrevista que surge como comentário ao artigo do Hoje Macau sobre a questão da abolição do português no ensino básico timorense , a académica analisa os prós e contras da implementação da língua lusa, sem esquecer a perspectiva de Timor-Leste.

Como pode ser visto o ensino da Língua Portuguesa em Timor-Leste?

A questão do ensino da Língua Portuguesa em Timor-Leste só pode ser abordada tendo em conta a actual e real situação da Língua Portuguesa no país. A complexidade da temática origina várias discussões e causa muitos desentendimentos, se não for acompanhada com rigor e conhecimento da situação vivida actualmente pelo povo timorense.

Mas quem fala português em Timor-Leste? 

Se consultarmos a Wikipédia, no artigo dedicado às línguas de Timor-Leste, deparamos com a informação de que actualmente cerca de 25% dos timorenses falam português. No entanto, na discussão que se segue encontramos o seguinte comentário: “Actualmente cerca de 25% dos timorenses falam português só nos sonhos de alguns fazedores de relatórios da Cooperação Portuguesa….” Os cientistas, no entanto, aconselham prudência e cálculos realistas: tanto o professor Ivo Castro, linguista da Universidade de Lisboa, como o professor Luiz Filipe Tomaz, historiador da Universidade Católica Portuguesa, advertem que esta percentagem baixa na realidade para cinco ou seis por cento. A verdade é que não dispomos ainda dos dados do último censo e os dados que citamos podem ser apenas aproximados, mesmo que o número dos falantes de português tenha vindo a subir nos últimos anos.

Essa é uma problemática no que diz respeito ao uso real do português?

Tendo em conta o uso real da Língua Portuguesa remetida apenas a um pequeno número de falantes, estamos perante uma situação em que cerca de um milhão de habitantes de Timor-Leste fala cerca de 20 línguas locais (os números variam segundo os autores, as fontes e os cálculos que são feitos para distinguir as línguas dos seus dialectos), assim como pelo menos quatro outros idiomas utilizados ao nível de contactos transnacionais e internacionais, o que remete para uma situação de plurilinguismo. Assim, o português, junto com o tétum (praça), língua franca de quase todo o território do país, são garantidas na Constituição da República Democrática de Timor-Leste, de 2002, como as duas línguas oficias do país, enquanto o inglês e o indonésio são garantidas como línguas de trabalho. “O problema é que a lei nem sempre tem o seu reflexo na realidade timorense: é preciso lutar para que o português seja, de facto, utilizado como uma língua oficial em Timor-Leste, ao lado do tétum, conforme previsto na Constituição, e que este estatuto não se cinja apenas para uma lei teórica que acaba por não ter o seu reflexo na realidade.”

Está claro para que cada um desses idiomas serve?

Na prática, não parece ser fácil definir em que situações cada um destes idiomas deve ser utilizado. Seria de esperar, por exemplo, que as línguas oficias, com base na letra da Constituição, servissem para os contactos internacionais com governos de outros países, com instituições e organizações internacionais. No entanto, segundo a Agência Lusa, em Junho, o Parlamento de Timor-Leste aprovou uma resolução para que as Nações Unidas e a União Europeia utilizassem o português ou o tétum no relacionamento institucional com as autoridades timorenses, visto que a língua utilizada na prática tem sido o inglês. O deputado do CNRT Arão Noé justificou que “nos países da CPLP a documentação é escrita também em Português, e unicamente em Timor-Leste é que esses documentos são só escritos em inglês (…). Para dignificar a nossa identidade, os documentos que circulam no nosso país devem ser escritos em português”. Se, por um lado, esta notícia é positiva e demonstra que as decisões do Parlamento vão no sentido de fortalecer a posição do português como língua oficial em Timor, por outro lado não se entende a razão por que se deve reforçar o que está garantido há quase dez anos pela Constituição com uma resolução extra do Parlamento.

E aí, que problemas podem ser apontados?

O problema é que a lei nem sempre tem o seu reflexo na realidade timorense: é preciso lutar para que o português seja, de facto, utilizado como uma língua oficial em Timor-Leste, ao lado do tétum, conforme previsto na Constituição, e que este estatuto não se cinja apenas para uma lei teórica”que acaba por não ter o seu reflexo na realidade.

Mas podemos assumir que o português não é falado no quotidiano? E qual o seu papel então?

Se assumirmos que o português em Timor-Leste não é, de facto, falado no dia-a-dia, mas deve ser defendido e promovido como a sua língua oficial, conscientemente escolhida para tal pelo seu povo em reconhecimento do papel que ela teve na criação da cultura e identidade timorenses, estaremos inclinados, também, para defender que, hoje em dia, não é propriamente objectivo dos portugueses encher as ruas de Timor de português, conforme defende no seu recente livro “Língua Portuguesa em Timor-Leste” o estudioso Nuno Carlos de Almeida, depois de ter passado quatro anos como agente de ensino de Língua Portuguesa no território timorense.

“Seria de esperar, por exemplo, que as línguas oficias, com base na letra da Constituição, servissem para os contactos internacionais com governos de outros países, com instituições e organizações internacionais.”

É preciso garantir a utilização do português em Timor-Leste?

Dada a realidade plurilingue do país e a sua necessidade de desenvolver bons contactos internacionais, torna-se importante que o estatuto de português como língua oficial seja, de facto, garantido na realidade e que este estatuto e a prática dele proveniente permitam pensar na imprescindibilidade do ensino da Língua Portuguesa em Timor-Leste. Assim, trabalhar para ensinar português como língua oficial implica, consequentemente, lutar que ela seja a língua veicular do ensino neste país, de preferência ao longo de todo o processo educativo. Se assim for, devem ser reunidas todas as forças para garantir que o ensino em português seja feito ao longo de todo o percurso. É este o interesse dos portugueses que têm vindo a investir há dez anos no processo.

Mas agora fala-se em abolir o português no ensino básico…

Segundo fontes oficiais, a reforma no ensino básico timorense que pretende abolir a Língua Portuguesa nos primeiros anos do ensino (e não em todo o ensino, como erradamente se tem vindo a inferir da notícia publicada no Portalingua) pode vir a pôr em causa o envio de mais de uma centena de professores de português, que nos últimos anos têm vindo a assegurar o ensino da língua aos professores timorenses do primeiro ciclo. Esta vertente da cooperação tem absorvido grande parte do esforço orçamental que Portugal reserva para Timor-Leste, principal destinatário da cooperação portuguesa no seio da CPLP.

Podemos ver essa situação como uma perspectiva da parte ‘portuguesa’. Como caracterizar o ponto de vista de Timor-Leste?

Existe o outro lado da questão que é preciso ter em consideração; trata-se da perspectiva timorense, aparentemente diferente do ponto de vista europeu. Se a Língua Portuguesa não é falada nas casas timorenses – onde se falam predominantemente as línguas locais e/ou o tétum-praça veicular -, as crianças que entram na escola, onde a língua oficial é o português, acabam por ser alfabetizadas e escolarizadas numa língua que não é a sua língua materna. Esta discrepância entre a língua materna das crianças e a língua adoptada pela escola para os fins oficiais pode constituir um grande entrave do ponto de vista psicolinguístico na luta pelo sucesso escolar, fenómeno bem conhecido por todos os países em que o plurilinguismo constitui a realidade vivida no dia-a-dia.

O que pode ser feito para contornar esse problema?

Em alguns dos países bilingues ou plurilingues – tal como se tem vindo a observar ao longo dos anos no caso de Cabo Verde – propõe-se, por exemplo, a introdução da alfabetização na língua materna, com o intuito de garantir maior sucesso escolar desde o princípio de escolarização da criança, optando-se pela introdução da língua oficial só a partir de uma etapa mais avançada da escolarização. No entanto, a verdade é que, em Timor-Leste, esta solução, apoiada em fundamentos psicolinguísticos, bem como em preocupações educacionais na mira do combate contra o analfabetismo e  insucesso escolar do país, parece entrar em choque com os compromissos políticos previamente assumidos e formalmente garantidos pela Constituição.

Como evitar esse confronto entre os dois tipos de língua?

Para evitar o presumível confronto entre as necessidades e direitos das crianças timorenses à escolarização nas melhores condições linguísticas possíveis, por um lado, e a letra da Constituição, que garante ao português o papel de língua oficial e, por conseguinte, veículo da educação, por outro, é de esperar que sejam tomadas decisões políticas adequadas para salvaguardar o bem e os interesses de todas as partes envolvidas.

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