MARTINHO JÚNIOR, Luanda
Os 42 anos de poder de Kadafi na Líbia devem ser avaliados objectivamente, para que todas as nações e respectivos povos do chamado Terceiro Mundo tenham oportunidade de, com o conhecimento das experiências do passado próximo que ocorreram naquele país, entendam muitos dos factores de desequilíbrio interno e externo correntes, desequilíbrios esses que são fomentados pela lógica capitalista que anima o império e seus aliados-fantoches, em época de globalização.
A Líbia é, de acordo com os últimos relatórios dos Índices de Desenvolvimento Humano, o país que melhor está em África!
Na grelha da classificação a Líbia situa-se entre os países de Desenvolvimento Humano Elevado no 55º posto: é o primeiro país africano e, entre os árabes, só o Kuwait (31º), o Qatar (33º), os Emiratos Árabes Unidos (35º) e o Barheim (39º) estão considerados em melhor posição, isto é, só as pequenas entidades nacionais estão melhor.
A Arábia Saudita está no 59º posto e os países do norte de África com costa para o Mediterrâneo que fazem fronteira com a Líbia vêm pela seguinte ordem: Tunísia (96º), Argélia (104º) e Egipto (123º)!
A que se deve afinal tudo isso?
Os 42 anos do poder de Kadafi na Líbia foram sobretudo “estruturantes”, levados a cabo com uma economia florescente e dinâmica, que levou inclusive a uma enorme acumulação de riqueza, sem paralelo na esmagadora maioria dos outros países do universo!
Quando Kadafi assumiu o poder, encontrou um país de nómadas subjugado aos parâmetros do colonialismo: uma sociedade culturalmente tradicionalista, conservadora, arcaica, fechada sobre si em seu feudalismo com comunidades dispersas e com pouco mais de um milhão de habitantes (uma das mais baixas densidades humanas no globo).
As cidades eram pequenas aldeolas, as estradas praticamente não haviam, a electricidade era um luxo e o subdesenvolvimento estava instalado de forma crónica como em todas as regiões colonizadas.
O rei Idris, instado pelos interesses coloniais, mantinha esse subdesenvolvimento crónico praticamente sem alterações, mas tudo isso se começou a alterar a partir do momento da chegada do Kadafi ao poder.
Kadafi transformou a Líbia num enorme canteiro de obras e atraiu muitos migrantes principalmente dos países limítrofes a sul, como o Chade (175º do IDH), o Mali (178º) e o Níger (182º e último da classificação dos IDH)…
É de realçar que o país mais pobre do mundo, o Níger, é aquele que acolhe precisamente os interesses franceses na exploração do urânio, sendo um dos maiores produtores mundiais, ou seja, onde a submissão neo colonial, aquela que mantém um subdesenvolvimento crónico, tem sido brutal, persistente e sem melhores alternativas.
Essa evidência é tanto mais pertinente quanto se deve sublinhar o papel de primeira grandeza da França, sob os auspícios de Sarkozy, nas estratégias contra Kadafi!
Os pobres migrantes africanos, jovens que constituíram uma parte substancial da mão-de-obra que transformou a Líbia, gente proveniente sobretudo dos países últimos classificados dos Índices de Desenvolvimento Humano, chegaram a ser na Líbia quase 2 milhões em 2010, mais do que a população líbia no último ano do reinado do Rei Idris!
O canteiro de obras na Líbia teve mão-se-obra essencialmente africana, ao contrário dos países situados a sul do Sahara, que estão a beneficiar duma mão-de-obra mais diversificada, de origem africana, asiática (numa percentagem muito elevada) e, numa muito menor expressão, europeia.
Na altura do início dos combates, foram 30.000 os chineses evacuados do solo líbio, enquanto os africanos saíam na casa das centenas de milhar!
Kadafi reconheceu o papel dos migrantes africanos de várias formas: deu ajuda aos países do Sahel, ajudou os tuaregues, contribuiu para o combate à pobreza…
Nesses países africanos a opinião pública é reconhecidamente favorável ao que Kadafi fez em benefício desses países e povos.
Num artigo da Voz da América (“O Coronel Kadafi é bem recebido nos países do Sahel” - http://www.voanews.com/portuguese/news/09_07_2011_gadhafi_sahel_network-129387028.html) esse reconhecimento é evidenciado:
“Apesar de ter sido afastado por rebeldes, o dirigente líbio Moammar Gadhafi continua a manter alguma popularidade da zona africana do Sahel, após anos de investimento líbio e a percepção de que os novos dirigentes de Tripoli estão mais interessados na Europa.
Procurado no país, o coronel Gadhafi é melhor acolhido no sul da Líbia, nos países do Sahel, onde investiu milhões de dólares em projectos públicos e privados.
Uma coluna de viaturas transportando apoiantes de Gadhafi atravessou na passada segunda feira para o Níger, e o Burkina Faso ofereceu asilo ao deposto dirigente líbio, embora um porta voz governamental tenha, posteriormente, retirado a oferta”…
Alguns analistas objectivamente mais atentos destacam o canteiro de obras que Kadafi estimulou na Líbia, a conjuntura que prevalece no quadro duma envenenada globalização e algumas das repercussões para África.
Miguel Urbano Rodrigues, lembra com oportunidade em “Kadafi morreu com dignidade e coerência” (http://resistir.info/mur/libia_20out11.html):
“O jovem oficial que em 1969 derrubou a corrupta monarquia Senussita, inventada pelos ingleses, agiu durante anos como um revolucionário. Transformou uma sociedade tribal paupérrima, onde o analfabetismo superava os 90% e os recursos naturais estavam nas mãos de transnacionais americanas e britânicas, num dos países mais ricos do mundo muçulmano. Mas das monarquias do Golfo se diferenciou por uma politica progressista. Nacionalizou os hidrocarbonetos, erradicou praticamente o analfabetismo, construiu universidades e hospitais; proporcionou habitação condigna aos trabalhadores e camponeses e recuperou para uma agricultura moderna milhões de hectares do deserto graças à captação de águas subterrâneas”.
Em “O assassinato de Kadafi e a crise moral dos europeus e dos EUA” Davis Sena Filho (Correio do Brasil) realça a conjuntura:
… “Mais uma vez, lideranças contrárias aos interesses da globalização (nova forma de colonialismo e pirataria) foram mortas e seus países invadidos e bombardeados em nome da liberdade, da democracia e de um mundo mais seguro.
Enquanto isso, o sistema capitalista excludente e belicoso derrete em Wall Street e nas praças européias importantes como a de Londres, com as populações desses países brancos, cristãos e desenvolvidos a gritar revoltados nas ruas contra a roubalheira do sistema financeiro e da leniência e subserviência de governos que foram e são cúmplices da jogatina praticada por empresas e instituições que, de forma criminosa, levaram à cabo uma crise econômica e financeira sem precedentes, que eliminou milhões de empregos desse povos que deitaram e rolaram durante quase cinco décadas com a opulência e a fartura às custas dos países africanos, asiáticos e principalmente os da América Latina, que sustentaram até a década de 1990 o alto padrão de vida dos europeus, estadunidenses, japoneses e outros países do assim denominado primeiro mundo, como o Canadá e a Austrália.
Como se esperava esses governantes de países desenvolvidos que agem secularmente como piratas e que, apesar de historicamente se odiarem, para roubar e matar se unem, porque precisam dessa vil aliança para movimentar seu parque industrial bélico e civil e assim renovar a circulação do dinheiro, inclusive o ilegal, que é lavado nos paraísos fiscais, grosso modo, porque todo mundo sabe disso, mas ninguém pega um tanque ou um míssil para destruir tais instituições financeiras, que fomentam há séculos a fome, a miséria e a exploração dos povos menos desenvolvidos, no que concerne às suas infraestruturas e ao acesso às tecnologias, à educação de qualidade e ao sistema bancário e industrial que garanta a seus países desenvolvimento econômico e bem-estar social, o que é quase impossível alcançar sem o apoio dos países desenvolvidos, que se recusam a efetivar um marco em que a cooperação e o aprendizado sejam a tônica.
Mais uma vez na história esses países brancos e cristãos e ocidentais que se comportam como aves de rapina ou como cães predadores optam pelo saque das riquezas alheias e o torna crível e cinicamente aceitável perante a população mundial por intermédio do sistema midiático, notadamente a imprensa comercial e privada (privada nos dois sentidos, tá?), que porta-voz e ponta-de-lança do sistema de capitais inicia e termina um processo de demonização dos presidentes dos países agredidos e invadidos ao ponto de não se saber, de forma alguma, como pensam, como vivem e o que fazem os povos vítimas de bombas, de mísseis, de todo tipo de armas de grosso calibre, que não têm como se defender contra forças estrangeiras que quase se dizimaram nas duas guerras mundiais iniciadas pelos brancos cristãos e que se consideram, com a maior cara-de-pau possível, civilizados e não selvagens”…
Na “carta aberta aos povos de África e do mundo” que 200 africanos eminentes tornaram pública em Agosto de 2011 (“A Líbia, a África e a Nova Ordem Mundial” – O original encontra-se em http://mrzine.monthlyreview.org/2011/libya270811.html), sublinha-se a desmistificação do papel da ONU e do Conselho de Segurança, uma ONU e um Conselho de Segurança que contribuem para a manutenção do subdesenvolvimento, a submissão de África e a ampliação da crise para dentro do continente.
Do texto evidencio apenas algumas das repercussões que o caso líbio vai acarretar para o próprio país, para o continente e nele, para o norte de África e substancialmente para uma das regiões mais pobres do mundo, o Sahel.
“Ao contrário das disposições da Carta da ONU, o Conselho de Segurança da ONU autorizou e permitiu a destruição e a anarquia na qual desceu o povo líbio.
No fim de tudo isto:
muitos líbios morreram e foram mutilados,
muita infraestrutura terá sido destruído, empobrecendo mais o povo líbio,
a amargura e a animosidade mútua entre o povo líbio terá sido mais fortalecida,
a possibilidade de chegar a um acordo negociado, inclusivo e estável ter-se-á tornado muito mais difícil,
a instabilidade terá sido reforçada entre os países vizinhos da Líbia, especialmente os países do Sahel africano, tais como o Sudão, Chade, Níger, Mali e Mauritânia,
a África herdará um desafio muito mais difícil para tratar com êxito da questão da paz e da estabilidade e, portanto, da tarefa do desenvolvimento sustentado,
aqueles que intervieram para perpetuar a violência e a guerra na Líbia terão a possibilidade de estabelecer os parâmetros dentro dos quais os líbios terão a possibilidade de determinar o seu destino e, mais uma vez portanto, constrangerão o espaço para os africanos exercerem o seu direito à auto-determinação.
Como africanos baseámos o nosso futuro como actores relevantes num sistema equitativo de relações internacionais na expectativa de que as Nações Unidas na verdade serviriam como fundamento da nova ordem mundial"…
As preocupações sobre a Líbia e a vasta região do Sahel tendem a aumentar após o assassinato de Kadafi, pois a Líbia era um elemento forte no combate à pobreza e um factor de equilíbrio para todos os povos da região.
Em Argel realizou-se em Setembro uma Conferência sobre os novos riscos que estão já a ocorrer (“Crise transformou zona do Sahel num paiol - conferência em Argel” ):
“A crise líbia transformou o Sahel num paiol devido à chegada em massa de armas, ao regresso de milhares de trabalhadores migrantes e de mercenários a uma região já refém do terrorismo e do contrabando, advertiram diversos responsáveis internacionais.
A região do Sahel, constituída por cerca de oito milhões de quilómetros quadrados repartidos por Argélia, Mali, Níger e Mauritânia, vai ser alvo de dois dias de debates de 38 delegações internacionais na capital da Argélia, tendo em vista debater uma estratégia de pacificação para o desenvolvimento e a segurança da zona.
Para o ministro dos Negócios Estrangeiros nigerino, Mohamed Bazoum, com a crise líbia a região foi transformada num paiol, quando já era atingida pelo terrorismo, e por tráficos transnacionais proporcionados pela dificuldade de assegurar a segurança e por uma pobreza endémica.
Atualmente, a pobreza é pior porque um dos magros recursos económicos da região, o turismo, desapareceu devido à presença da Al-Qaida do Magreb Islâmico (AQMI), responsável por numerosos raptos de estrangeiros, e de traficantes de droga, de armas e de seres humanos – a imigração clandestina em direção à Europa – neste imenso deserto.
A circulação das armas aumentou, e pequenas armas de pequeno calibre também foram apreendidas em junho no Níger, recordou Bazoum.
Os traficantes de todo o género e terroristas recuperaram centenas de Toyota 4X4 que existem em quantidade nesta imensa região difícil de tornar segura, adiantou.
O homólogo do Mali, Soumeylou Boubeye Maïga, sublinhou também o regresso em massa de migrantes para zonas precárias.
Cerca de 20.000 trabalhadores do Mali já regressaram e agora virá a segunda vaga com aqueles que estavam envolvidos nos combates e que regressam com armas.
Estes trabalhadores serão muito difíceis de integrar ou reintegrar nas zonas pobres, sublinha Bazoum.
Por outro lado, o ministro dos Negócios Estrangeiros da Mauritânia, Hamadi Ould, afirmou que o Sahel está ameaçado pelo terrorismo, pela pobreza e pela imigração clandestina e que é importante preservar os jovens da região que podem ser incentivados a juntar-se a grupos terroristas.
Shira Villarosa, a representante norte-americana na conferência, membro do gabinete coordenador anti-terrorista do departamento de Estado, estima que os terroristas da Al-Qaida no Magreb islâmico (AQMI) são atualmente menos de mil.
A ameaça é global e está bem presente, sublinharam diversos participantes, mas os membros do Conselho de Segurança bem como a União Europeia presentes na conferência defenderam que o esforço da luta contra a AQMI deve ser dirigido pelos governos da região.
Entretanto, os argelinos insistem que a luta contra estas ameaças de envergadura apelam necessariamente para a conjugação de esforços e a convergência de todas as boas vontades.
Atualmente, a Argélia enfrenta um recrudescimento dos atentados terroristas, dos quais o que maior número de mortos causou foi a 26 de agosto, do qual resultaram 18 mortos na academia militar de Cherchell perto de Argel.
Os programas de ajuda à região, bilaterais ou multilaterais, são numerosos. A União Europeia fixou a ajuda global para a região em 650 milhões de euros, para programas de desenvolvimento e de formação e em ajuda militar”.
É claro que a guerra na Líbia dará sequência a um crescendo de tensões políticas e sociais em todo o Sahel, em relação às quais os países da região, alguns deles com os mais baixos Índices de Desenvolvimento Humano, poucas capacidades disponíveis detêm para fazer face ao que se está a fermentar.
Essas poucas capacidades irão implicar em pedidos de ajuda, mais ingerências e manipulações internacionais, por que a “luta contra o terrorismo” tende a tornar-se num estandarte em todo o Sahel, quer dizer: nunca o terreno esteve tão fértil para o USAFRICOM do que agora.
Os Estados Unidos e os aliados-fantoches da OTAN sabem que a declaração formal do fim das actividades militares da coligação na Líbia a 31 de Outubro corrente, terá garantida sequência “informal” em função do “efeito dominó” (um conceito tão ao gosto dos “think tanks” da hegemonia) que a guerra na Líbia está desde logo a provocar em todo o Sahel, ou seja, num território sete vezes maior que a própria Líbia!
É hoje mais evidente que nunca que o “arco de crise” a que me referi num artigo no princípio deste ano, amplia-se para dentro do continente africano, chegando neste momento não só ao Sahel e à Nigéria, mas também ao coração de África: a região central dos Grandes Lagos.
Foto: panorâmica da esplêndida capital da Líbia, Tripoli.
1 comentário:
O "Filho de África" reclama as jóias da coroa de todo um continente
por John Pilger
A 14 de Outubro, o presidente Barack Obama anunciou o envio de forças especiais americanas para a guerra civil do Uganda. Nos próximos meses, tropas de combate americanas serão enviadas para o Sudão do Sul, Congo e República Centro-Africana. Obama assegurava também, satiricamente, que estas apenas "actuarão" em "auto-defesa". Com a Líbia securizada, está então em marcha uma invasão americana do continente africano.
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http://resistir.info/pilger/pilger_20out11_p.html
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