terça-feira, 25 de outubro de 2011

KADAFI – OS ERROS DE APRECIAÇÃO ESTRATÉGICA PAGAM-SE CARO – II




MARTINHO JÚNIOR, Luanda

Não foi portanto em relação ao canteiro de obras, em si, que Kadafi implementou durante décadas, que houve erro estratégico da parte dele, até por que a habitação para todos foi garantida duma forma que se poderá considerar, ao nível de África, exemplar (embora insuficientemente divulgada por propositada omissão sobretudo dos “média de referência” de que se serve o império).

Onde Kadafi começou por falhar sob o ponto de vista estratégico, foi precisamente na apreciação das questões humanas inerentes à sua revolução!

O “Livro Verde” de Kadafi era um ponto de partida que se manteve inalterável enquanto a própria Líbia foi mudando, num mundo com alterações tão profundas nos últimos 42 anos!

Não bastou a democracia directa, participativa e o respeito que Kadafi teve para com os clãs e tribos do seu povo: haveria que acompanhar e discutir sempre, a partir das humanidades (da antropologia cultural, da sociologia e da psicologia pelo menos) a evolução da sociedade, bem como o papel e relacionamento do sistema político-institucional, alimentando uma salutar crítica interna do sistema e ao sistema, de forma a dar luta à burocratização e a todo o tipo de riscos que isso acarreta.

De facto, ao criar tantas infra estruturas, tantas estruturas e recorrendo a tanta riqueza, Kadafi manteve para lá dos limites o modelo orgânico e institucional “pétreo” que respeitava o passado na sua sociedade, que favoreceu a relativa senilidade dos clãs e com cada vez menos abertura aos potenciais das novas gerações.

Com isso as tensões na sociedade foram aumentando pois o surgimento vital das novas gerações, à medida que o cosmopolitismo se tornou irreversível, merecia ter sido apreciado no âmbito das próprias críticas a que o sistema de democracia directa e tribal deveria ter sido sujeito.

Em função das transformações físicas que foram sendo operadas ao longo dos 42 anos de poder popular e tribal, duma democracia directa que o manteve como timoneiro à frente dos destinos da Líbia, por um lado e em função das alterações aos termos da mentalidade-padrão, do comportamento, da atitude e até dos usos e costumes do seu povo, em cenários que não foram suficientemente bem estudados em termos antropológicos, sociológicos e psicológicos, cenários que estavam abertos a outras respostas por outro, tudo isso fez com que as tensões primeiro, as fissuras depois, viessem a implicar riscos, que foram imediatamente explorados pelo império.

Esse erro estratégico “de palmatória” por seu turno, foi de facto essencial para a brecha conseguida pela ingerência externa a partir da década de 90, levada a cabo pelos interesses e conveniências da hegemonia no quadro da corrente globalização, a fim de instalar de forma programada, sem que o próprio Kadafi se desse muita conta disso, a subversão do regime e o que se desencadeou sobretudo desde 2007 a esta parte: um plano estratégico tecnicamente concebido para integrar no mesmo processo as transformações da conveniência de mais um ignóbil acto de pirataria ocidental e de rapina de África em pleno século XXI!

As sociedades não são estáticas e não basta lutar contra a pobreza, contra o analfabetismo, contra a doença, a fome ou a miséria: há que estudar de forma tão científica e ampla quanto o possível as implicações humanas das transformações, atendendo aos anseios, expectativas e esperanças geradas a partir dos próprios impactos!

Ao se atacarem os factores causais do subdesenvolvimento, devem-se de forma inteligente e equilibrada referenciar as transformações que se vão operando em todas e em cada uma das comunidades, por mais distantes que elas se encontrem das modernas metrópoles e dos organismos do poder e de decisão.

Nesse sentido, as questões humanas devem ser privilegiadas nesses estudos, pois quando há impactos culturais, é todo o relacionamento social que é alterado, por mais conservadoras ou mesmo resistentes que as comunidades sejam, havendo sempre novos elementos e factores a considerar que vão germinando, despontando e crescendo.

É isso também o que pode contribuir para a geração da unidade, que não se pode limitar a uma reinterpretação (cada vez mais subjectiva) da realidade, fomentando uma ideia que só corresponde a um domínio que não sujeito a crítica se vai tornando vicioso, mas deve ser motivo dum estudo atento, exaustivo e continuado do povo, da sociedade, dos intervenientes nos mais diversos escalões e estatutos, dos processos culturais em curso (sob o ponto de vista antropológico) e da psicologia corrente das pessoas, dos grupos e das comunidades.

A unidade nacional não deve ser inibidora, muito pelo contrário, dum cada vez mais saudável exercício de cidadania e participação, por que a unidade nacional mobiliza-se continuamente e não pode ser um fenómeno cada vez mais distante do carácter das transformações humanas!

Instalar energia com base em tecnologias de nova geração (solar, ou eólica), por exemplo numa remota aldeia do Terceiro Mundo, mesmo que ela sirva apenas os recursos comunitários e não o dos agregados familiares, propicia a abertura à televisão, à rádio, às comunicações, à pequena indústria, à melhoria da qualidade da água, etc., atraindo a atenção de todos e de cada um para as novidades, estimulando as suas aspirações, os seus sonhos e iniciando as alterações nos relacionamentos sociais, por muito estáticas ou resistentes que elas tenham sido até então.

Ter-se-á Kadafi apercebido realmente disso?

A questão humana que mereceu um estudo aprofundado por parte da ingerência externa, foi quanto a mim o ponto de partida para a manipulação, a ingerência e a agressão, contribuindo sobremodo para o estabelecimento dos programas de subversão a Kadafi, uma parte deles estabelecidos até com a própria contribuição involuntária de Kadafi, que pisou as próprias minas e armadilhas que desatentamente contribuiu para semear na sociedade líbia e sobretudo nos próprios mecanismos do seu poder!

Desde que começou a aproximação aos países ocidentais que Kadafi começou a ilusão de que à sua volta tudo se manteria inalterável, quando afinal tudo estava a mudar até no seu círculo “in”!

É inaceitável que, com os meios à sua disposição, os estrategas que rodeavam Kadafi não tenham sequer tomado atenção, por exemplo, às revelações psicológicas que se podem extrair das apreciações públicas que são feitas por um CIA World Factbook (https://www.cia.gov/library/publications/the-world-factbook/geos/ly.html), neste caso acerca da Líbia, reveladoras da mentalidade do império que conduziu ao presente revanchismo, apreciações públicas essas que foram cultivadas com tanto refinamento e esmero pelas elites da hegemonia no âmbito das políticas e dos interesses do império!

Não terá ele, por exemplo e já em desespero de causa, achado demasiada a esmola de, depois dos custos da trajectória de aproximação e no seguimento da troca de embaixadores com os Estados Unidos em Janeiro de 2009, ter a Líbia assumido um mandato de 3 anos no Conselho de Direitos Humanos da ONU?

A imensa riqueza de que Kadafi dispôs inibiu a sua capacidade estratégica de discernimento e inebriou-o em relação às estratégias do ocidente e do império: convenceram-no que ele estava a gerar parcerias saudáveis, quando por via do fundamentalismo do “mercado” ele já estava de facto e afinal, a gerar o colapso do seu poder e a assinar a sua própria sentença de morte, sem passar sequer pelos Tribunais dos seus algozes!

A apreciação estática da sociedade foi um erro estratégico de maior grandeza que foi explorado pela inteligência dos piratas do século XXI e toda a panóplia imensa de meios à sua disposição, a começar nos estudos “HUMINT”, atraindo para a sua esfera de influência muitos daqueles que “fielmente” estavam a servir o próprio Kadafi!

Provavelmente, muitos dos erros que foram imputados ao “ditador”, terão sido deliberadamente cometidos por esses agentes, a mando dos serviços de inteligência aos quais estavam ligados…

A deriva de Kadafi a partir da década de 90, reaproximando-se dos países ocidentais depois das acções consideradas terroristas que lhe foram imputadas, é cumulativa ao erro de apreciação estratégica em relação à sociedade líbia e ao seu próprio povo!

Muitos são os exemplos de sínteses analíticas que têm sido publicados ao longo dos últimos meses que dão conta do aproveitamento dos erros de apreciação de Kadafi em relação ao processo humano de transformações inerentes ao poder e à sociedade líbia.

De entre esses exemplos de sínteses analíticas vou evidenciar alguns que foram recolhidos e seleccionados por mim.

Segundo John Pilger em “A CIA por detrás da rebelião” (http://resistir.info/pilger/pilger_06abr11_p.html):

“Os pormenores também são conhecidos.

Segundo se diz, os rebeldes pró-democracia líbios são comandados pelo coronel Khalifa Haftar que, segundo um estudo da Fundação Jamestown americana, montou o Exército Nacional Líbio em 1988 com forte apoio da CIA.

Nos últimos 20 anos, o coronel Haftar tem vivido não muito longe de Langley, Virginia, o lar da CIA, que também lhe fornece um campo de treino.

Os mujihadeen, que deram origem à al-Qaida, e o Congresso Nacional Iraquiano, que forjaram as mentiras de Bush/Blair sobre o Iraque, foram patrocinados por Langley, da mesma forma aceite por toda a gente.

Os outros líderes rebeldes incluem Mustafa Abdul Jalil, ministro da Justiça de Kadafi até Fevereiro, e o general Abdel-Fattah Younes, que chefiou o ministério do Interior de Kadafi: ambos com estrondosas reputações de repressão brutal de dissidentes.

Há uma guerra civil e tribal na Líbia, que inclui a rejeição popular contra a actuação de Kadafi em relação aos direitos humanos. Mas o que é intolerável para o ocidente não é a natureza do seu regime, é a independência da Líbia, numa região de vassalos; e esta hostilidade pouco mudou em 42 anos, desde que Kadafi derrubou o rei feudal Idris, um dos tiranos mais odiosos apoiados pelo ocidente.

Kadafi, com os seus modos beduínos, hiperbólicos e bizarros, há muito que personaliza o lobo feroz ideal (Daily Mirror), exigindo agora que os heróicos pilotos americanos, franceses e britânicos bombardeiem áreas urbanas em Tripoli, incluindo uma maternidade e um centro de cardiologia.

O último bombardeamento americano em 1986 conseguiu matar a sua filha adoptiva”…

Em “Agentes da CIA estariam na Líbia orientando rebeldes contra Kadafi” fazia-se constar:

“Mesmo os Estados Unidos descartando a chance de um ataque por terra, notícias dariam conta de que grupos de agentes da CIA já estariam na Líbia, trabalhando de forma clandestina na tentativa de reunir informações para a realização de ataques aéreos e criar contatos com os rebeldes que estão contra o ditador líbio, Muammar Gadafi. As informações estão publicadas na edição desta quarta-feira do New York Times.

A notícia foi dada depois que uma agência de notícias teria revelado que o presidente norte-americano, Barack Obama autorizou o envio de apoio secreto aos rebeldes. Espiões americanos também fariam parte do grupo. Ainda segundo o jornal, agentes do serviço secreto britânico M16 também estão na Líbio, e dirigem os bombardeios feitos por aviões do Reino Unido. Eles buscam informações sobre armamentos, instalações militares das forças e tanques das forças de Gadafi. Os espiões seriam funcionários da antiga sede da agência em Trípoli.

As notícias se multiplicaram após a divulgação da suposta autorização dada por Obama, contudo, a Cia e a Casa Branca não fizeram comentários sobre o caso. Não está claro o papel exato da agência na Líbia, mas seus funcionários estariam envolvido no resgate do piloto de um F-15 americano que estava em poder das forças de Gadafi depois de um acidente com seu avião, segundo as informações de Associated Press”.

Em “Our man in Tripoli” (http://www.globalresearch.ca/index.php?context=va&aid=24096), Michel Chossudovsky, numa síntese analítica a não perder, escreveu:

“Moussa Koussa was Our Man in Tripoli.

The circumstances of his defection as well as the history of his collaboration with the CIA and MI6, suggest that for the last ten years, he has been serving US and Allied interests, including the planning of the pro-democracy armed insurrection in Eastern Libya.

Former head of Libyan intelligence Moussa Koussa played a central role in channelling covert support to the LIFG on behalf of his Western intelligence counterparts.

Former CIA director George Tenet, while not explicitly referring to Our Man in Tripoli, acknowledges in his 2007 autobiography that the easing of tensions with Libya [was] one of the major successes of his tenure, as it led to cooperation between the two spy services against al-Qaeda. (quoted in Intelligence Partnership between Qadhafi and the CIA on counter-terrorism, op cit)

There should be no doubt: NATO and the LIFG are bed-fellows. The Western military alliance is supporting a rebellion integrated by Islamic terrorists, in the name of the war on terrorism.

Who are the terrorists? In a bitter twist, while the Islamic jihad is featured by the US Administration as a threat to Western civilization, these same Islamic organizations including the Libya Islamic Fighting Group (LIFG) constitute a key instrument of US military-intelligence operations in Central Asia, the Middle East, North Africa, not to mention the Muslim republics of the former Soviet Union”.

Moussa Koussa (http://en.wikipedia.org/wiki/Moussa_Koussa), “formado” (é propositadamente ironia a utilização deste termo) pela Universidade de Michigan, Estados Unidos, que de 1994 a 2009 foi Chefe da Inteligência Líbia, (um exemplo extraordinário das “distracções” de Kadafi), foi agente da inteligência britânica pelo menos durante dez anos de clandestinidade, só tendo sido feito sair na hora própria de Tripoli pelo MI-6, quando os acontecimentos já se desenrolavam em fase irreversível.

Na altura desse programado eclipse dos cenários públicos e diplomáticos, em Fevereiro de 2011, Moussa Koussa era só Ministro das Relações Exteriores da Líbia!...

O seu papel, melhor a sua “legenda”, foi de tal maneira requintada quanto foi ele que, em estreita conexão com os serviços de inteligência britânicos e norte americanos, implementou até a máquina de repressão de Kadafi sobre exilados e dissidentes (veja-se “Moussa Koussa’s secret letters betray Britain’s Libyan connection” – http://feb17.info/news/moussa-koussas-secret-letters-betray-britains-libyan-connection/).

Em “Libya's torturer-in-chief offered asylum in Britain in return for help toppling Gaddafi” (http://www.dailymail.co.uk/news/article-1372780/Libyas-torturer-chief-Moussa-Koussa-offered-asylum-Britain-topple-Gaddafi.html), o analista Robert Ferkaik, refere-se às ironias dessa legenda, muito ao gosto britânico.

…“MI6 officers first made contact with Koussa, who has been linked with the Lockerbie bombing and the killing of WPC Yvonne Fletcher outside the Libyan Embassy in London, in the first few days after the UN-sanctioned attacks on Gaddafi’s military machine on March 19.

A source told The Mail on Sunday: Central to the enticements was the prospect of living in safety in the UK under the protection of the asylum laws. Koussa’s greatest concern was what would happen to him once he left Gaddafi.

This was not a long, drawn-out operation – once contact had been made it all happened pretty quickly.

Koussa fled Tripoli last Monday night after telling colleagues that he was seeking medical help in Tunisia. The convoy of official vehicles crossed the Tunisian border and went on to Tunis’s Djerba-Zaris airport.

From there, MI6 officers helped charter a private Gulfstream G200 from TAG Aviation to take him to Farnborough, Hampshire”…

Terão realmente os serviços de inteligência britânicos, desde os tempos pelo menos do Rei Idris, perdido qualidade na Líbia apesar dos 42 anos do poder de acordo com o “Livro Verde” de Kadafi!?...

Foto: Kadafi e um dos principais agentes do MI-6 na Líbia, dentro do seu círculo de poder, Moussa Koussa.

*Relacionado anterior:

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