quinta-feira, 6 de outubro de 2011

RAPIDINHAS DO MARTINHO – 49




MARTINHO JÚNIOR

RESGATAR ÁFRICA

I - África conseguiu através dum esforço vital que durou várias décadas, realizar o projecto histórico e estratégico de resgate do que se prendia à escravatura, ao colonialismo e ao “apartheid”, bem como a algumas de suas sequelas, por via do sentido de vida que foi cultivado com tanto amor rigoroso e vontade solidária no quadro do movimento de libertação, onde gravitaram as identidades, as mobilizações e as capacidades de luta por parte de quem sofreu tanta opressão e humilhação.

Várias gerações foram protagonistas desse esforço histórico, um pouco por toda a África, mas sintomaticamente sobretudo na África Austral.

Essas vitórias, algumas delas conseguidas com o recurso às armas, não são um fim em si mesmas, por que o resultado humano do acumular de tantas injustiças históricas, é um dos mais atrozes subdesenvolvimentos que subsiste na humanidade.

As provas podemos encontrar nas sociedades africanas ao sul do Sahara, inclusive na África do Sul, bem como em toda a América, onde as comunidades de afro descendentes são quantas vezes marginalizadas e sujeitas aos maiores desequilíbrios e pressões de toda a ordem.

Nações inteiras na América Latina sofrem o resultado de mais de 500 anos de injustiças históricas e se algumas procuram libertar-se de grilhetas antigas tendo Cuba como um farol de inspiração e como exemplo, outras como o Haiti são enormes “ghetos” onde vegetam os descendentes dos antigos escravos, confinados a intransponíveis muros que não foram derrubados com o “simbolismo” que os poderosos da Terra deram ao derrube do muro de Berlim.

De facto esses muros a que me refiro, são cada vez mais perceptíveis na África Austral, a começar na África do Sul.

A luta de libertação conseguiu a vitória do fim do “apartheid”, todavia os muros sociais e até físico-geográficos que se vão erguendo, obriga-nos a levantar a necessidade dos povos acordarem para o estado de torpor próprio do subdesenvolvimento crónico em que (sobre)vivem, por todas as razões, inclusive aquelas que agora implicam ideologias elitistas que proliferam nos substratos que, em função da lógica capitalista detêm o poder e a riqueza por via do egoísmo, nutrindo-se de forma ainda mais gravosa dos lucros inflacionários e especulativos típicos do neo liberalismo e… hipotecando as heranças históricas.

Para mim Cuba Revolucionária teve e tem todo o mérito ético e moral das resistências estratégicas que promovem o vigor da incessante procura de justiça e do equilíbrio universal: a revolução dos oprimidos em Cuba tem interpretado com inteligência o sentido de vida e a imensa tarefa de levar a cabo os resgates históricos, tarefa essa que não teve nem terá fim próximo!

É essa sua afirmação de socialismo e é com ela que se têm vencido bloqueios e muros, incluindo alguns fenómenos psicológicos traumáticos de séculos que não estão neutralizados em África, nem nas Américas.

A presença dos internacionalistas cubanos do lado do movimento de libertação em África, assim como a presença dos médicos e educadores cubanos por toda a América Latina, em África, na Ásia, na Oceania e até na Europa, dão continuidade à saga que responde à necessidade de se aprofundarem esses resgates.

Para esse efeito a saúde e a educação em Cuba se tornaram exemplo cada vez mais reconhecido!

A presença desses médicos e educadores no Haiti, enfrentando as conjunturas mais terríveis em plena identificação com o povo haitiano, é um indicador do caminho a seguir para toda a humanidade, por via da paz e não das ingerências, das manipulações e das guerras, sob as mais versáteis evocações que só beneficiam as minorias que compõem a aristocracia financeira mundial!

Cuba Revolucionária sabe que, conforme Eduardo Gajeano, o “Haiti é um país ocupado” (http://www.brecha.com.uy/inicio/item/9182-haiti-pais-ocupado):

“Consulte usted cualquier enciclopedia. Pregunte cuál fue el primer país libre en América. Recibirá siempre la misma respuesta: Estados Unidos. Pero Estados Unidos declaró su independencia cuando era una nación con 650 mil esclavos, que siguieron siendo esclavos durante un siglo, y en su primera Constitución estableció que un negro equivalía a las tres quintas partes de una persona.

Y si a cualquier enciclopedia pregunta usted cuál fue el primer país que abolió la esclavitud, recibirá siempre la misma respuesta: Inglaterra. Pero el primer país que abolió la esclavitud no fue Inglaterra sino Haití, que todavía sigue expiando el pecado de su dignidad.

Los negros esclavos de Haití habían derrotado al glorioso ejército de Napoleón Bonaparte, y Europa nunca perdonó esa humillación. Haití pagó a Francia, durante un siglo y medio, una indemnización gigantesca, por ser culpable de su libertad, pero ni eso alcanzó. Aquella insolencia negra sigue doliendo a los blancos amos del mundo”.
(…)

“Hasta cuándo seguirán los soldados extranjeros en Haití? Ellos llegaron para estabilizar y ayudar, pero llevan siete años desayudando y desestabilizando a este país que no los quiere.

La ocupación militar de Haití está costando a las Naciones Unidas más de 800 millones de dólares por año.

Si las Naciones Unidas destinaran esos fondos a la cooperación técnica y la solidaridad social, Haití podría recibir un buen impulso al desarrollo de su energía creadora. Y así se salvaría de sus salvadores armados, que tienen cierta tendencia a violar, matar y regalar enfermedades fatales.

Haití no necesita que nadie venga a multiplicar sus calamidades. Tampoco necesita la caridad de nadie. Como bien dice un antiguo proverbio africano, la mano que da está siempre arriba de la mano que recibe.

Pero Haití sí necesita solidaridad, médicos, escuelas, hospitales, y una colaboración verdadera que haga posible el renacimiento de su soberanía alimentaria, asesinada por el Fondo Monetario Internacional, el Banco Mundial y otras sociedades filantrópicas.

Para nosotros, latinoamericanos, esa solidaridad es un deber de gratitud: será la mejor manera de decir gracias a esta pequeña gran nación que en 1804 nos abrió, con su contagioso ejemplo, las puertas de la libertad”.

Cuba Revolucionária interpretou a rota dos escravos e em pleno século XXI assume a vanguarda dos que sustentam os resgates que ainda há a realizar em todas as manifestações dessa rota dos mais oprimidos da Terra, a rota que esteve na origem do próprio capitalismo.

II - É essa uma das percepções que fui ganhando da universidade da vida, que necessariamente choca com muitas interpretações levianas que se têm feito da Revolução Cubana, inclusive no “site” onde eu tenho apresentado os meus escritos em nome da “batalha global das ideias”.

Em “20 anos do fim do apartheid: a história duma cumplicidade criminosa” (http://auto-gestao.blogspot.com/2010/02/20-anos-do-fim-do-apartheid-historia-de.html) um analista com memória sublinha:

“Poucos lembram hoje em dia que, há vinte anos atrás, governos e elites dos EUA e do chamado ocidente apoiavam o regime do apartheid de forma ora velada, ora escancarada, tratando-o como um importante aliado “na defesa da liberdade e da democracia” na África; poucos lembram também que o regime norte-americano, que hoje rende louvores a Mandela, o tachava naqueles tempos de perigoso terrorista.

E menos pessoas ainda lembram que, naqueles tempos, os mais firmes aliados na luta do povo sul-africano contra o regime de segregação racial foram justamente as terríveis ditaduras do mundo socialista, em especial Cuba, União Soviética, Angola e Moçambique, que na contramão do chamado mundo livre, lutaram de forma implacável para isolar o regime sul-africano perante a comunidade internacional, inclusive pagando com o sangue de seus povos para conter o expansionismo militar do apartheid na África meridional.

Mandela jamais deixou de agradecer aos terríveis comunistas pelo inestimável apoio destes à liberdade de seu povo, inclusive chamando Fidel Castro de irmão.

Nada disso surpreende.

A história do apartheid foi a mesma da Guerra Fria, ou seja, foi a história da resistência heróica de povos inteiros contra o poder inescrupuloso do capital transnacional.

De início uma luta de classes localizada dos negros pobres da África do Sul contra a opressão de uma elite branca genuinamente fascista, o conflito se proliferou pelo resto da região quando os EUA viram na elite afrikaaner o aliado ideal para apoiar a expansão de suas transnacionais e combater o perigo vermelho na África subsaariana – principalmente após a descolonização da antiga África portuguesa e a posterior guinada de Angola e Moçambique para o campo socialista.

Assim, o apoio da auto-intitulada maior democracia do mundo foi importante não somente para a sobrevivência do apartheid como também estimulou o expansionismo imperialista do regime fascista sul-africano na região.

Por todo o século XX, países como Angola, Botsuana, Zimbábue e Namíbia sofreram invasões, agressões e ataques terroristas promovidos pela elite branca capitalista sul-africana, que a exemplo da norte-americana, ambicionava roubar para si o petróleo, o ouro e o diamante de outros povos e submetê-los à completa exploração, tal como já faziam com o próprio povo sul-africano.

Porém, tudo mudou com o fim da Guerra Fria e do perigo vermelho, tornando o apoio ao apartheid pelos governos do ocidente não somente insustentável como também desnecessário.

Completamente isolada, a racista elite branca afrikaaner se viu obrigada a capitular, e o resto da história já se conhece.

Estes são os fatos da cumplicidade do capitalismo com os crimes do apartheid, que passados vinte anos, os donos do capital ainda tentam em vão apagar.

Resta saber quando o ocidente livre e democrático e seu capitalismo irão pagar sua dívida para com os povos da África subsaariana, ou ao menos prestar contas de seu legado racista e opressor perante a Históri”.

Como a história não teve seu fim, o mesmo capitalismo cúmplice do “apartheid” assume outras cumplicidades com o elitismo que vem proliferando nas sociedades africanas e também na África do Sul, onde uma “elite negra” está a ganhar o seu espaço, esvaziando o sentido de luta do movimento de libertação.

Aos muros do “apartheid” esse capitalismo cúmplice investe na erecção dos mais diversos muros e barreiras sociais.

Essa projecção é alimentada pelos mesmos credores do “apartheid”, as correntes de multinacionais que estão por dentro do “lobby dos minerais” desde os tempos da formação da União Sul Africana por via do engenho e arte imperialistas de Cecil John Rhodes!

Ele só errou na altura por que ainda não havia um estado como o de Israel senão, ao invés de lançar o programa “do Cabo ao Cairo” teria lançado o programa mais fiável (entenda-se fiável para a hegemonia), “do Cabo a Tel Aviv”…

Os vínculos em relação às operações das multinacionais mineiras, em relação às operações do cartel dos diamantes e em relação ao elitismo aplicado ao conhecimento, à economia e às sociedades, assumem-se globalmente, mas de forma cada vez mais explícita na África Austral, sob os rótulos mais atraentes e tentadores, apesar das implicações que houveram tanto com o “apartheid” como no que foi “cultivado” na “1ª Guerra Mundial Africana” que teve e tem reflexo nos poderes sobre a posse e o controlo das riquezas, a base da “nova dinâmica” das “novas elites”.

O poder sobre as riquezas de África não dão acesso a todos, não tem nada a ver com democracia e as disputas que prevalecem, sob o pano de fundo de contradições políticas, económicas e sociais, são muitas vezes substância do esvaziar do movimento de libertação no que diz respeito ao seu inerente sentido de vida e à vontade dos oprimidos em realizar os resgates históricos!

É a própria hegemonia que está preocupada com as tensões sociais que animam as sociedades africanas e, na ausência da dialéctica marxista, procuram pelas mais diversas formas e métodos, ao fazerem avaliações da situação, fomentarem desde a origem as contradições a fim de melhor poderem “defender” seus interesses e conveniências, aproveitando-se das imensas vulnerabilidades existentes nos estados, nas sociedades, no homem!

À hegemonia interessa hoje mais que nunca a subversão do sentido de vida que advém do movimento de libertação e, no caso da África do Sul, é a própria “Voz de América” que assume uma pequena parte de protagonismo, ou seja, é por essa via que os mecanismos da hegemonia e das elites também “trabalham as massas” em função dos seus programas de manipulação e ingerência.

João Santa Rita afirma a partir de Washington, onde de há muito está, que “África do Sul pode deparar-se com violência catastrófica” (http://www.voanews.com/portuguese/news/09_29_2011_southafricareport_voanews-130781263.html):

“Elite do ANC vê a política como meio mais rápido e seguro de acumulação de riqueza - adverte analista angolano.

A elite de poder no ANC, não é uma excepção ás elites pós coloniais africanas e vê o poder como uma fonte de enriquecimento pessoal.

Violência política catastrófica poderá eclodir na África do Sul a médio e longo prazo, diz um estudo sobre a situação neste país recentemente publicado aqui nos Estados Unidos.

O documento titulado As Ténues Fundações de um dos Estados Estáveis de África é de autoria do Dr. Assis Malaquias, um investigador do Centro África para Estudos Estratégicos da Universidade de Defesa Nacional dos Estados Unidos.

Malaquias escreve que os casos de violência politica no país tem vindo a piorar e são um indicativo da fragilidade potencial do país.
Essa violência é principalmente causada pela pobreza, desigualdade e clientelismo político.

Fraco crescimento económico, incapacidade institucional e oportunidades educacionais limitadas resultaram num estado democrático pós apartheid que tem sido lento a criar empregos ou a fornecer serviços básicos à população, diz o estudo.

O Dr. Malaquias afirma que o programa Black Economic Empowerment que visa abrir as portas da economia a companhias ou cidadãos negros beneficiou apenas uma minoria ligada polticamente ao ANC cujos dirigentes vêm o poder como uma fonte de enriquecimento pessoal.

A elite de poder no ANC, escreveu Malaquias, não é uma excepção ás elites pós coloniais africanas, afirma o documento que cita ainda um aumento da incompetência e queda nos padrões de serviços através do país.

Numa entrevista à Voz da América o Dr Malaquias negou que o seu relatório fosse demasiado pessimista”.

Os analistas enfeudados aos interesses da hegemonia, não têm em conta o processo de socialização que adensou o movimento de libertação, não fazem a crítica histórica ao “apartheid”, alimentam as correntes e filosofias de conhecimento elitista, “esquecem” que o movimento de libertação só foi possível com o apoio das correntes do socialismo e daqueles que são inteligentes sobre os fenómenos históricos e humanos que advêm da lição que foi a rota dos escravos e do que dela perdura até aos nossos dias!

O “relatório Malaquias” pode-se encontrar em http://africacenter.org/wp-content/uploads/2011/08/ARP3_Final.pdf e é claro como a água que é também muito oportuno face às subtis ingerências que estão em curso por via do poderoso “lobby dos minerais”, na África Austral, na África do Sul e em Angola, neste caso último sobretudo a partir do momento que Justino Pinto de Andrade, um dos angolanos que já esteve filiado à Open Society de George Soros, fez sua intervenção em Benguela, em finais do ano passado (http://www.angolaresistente.net/2010/12/30/discurso-de-benguela-conselho-nacional-do-bloco-democratico-justino-pinto-de-andrade-28122010/).

As elites africanas, as que compõem poder e as que lhe são oposição, não têm direito de manipulação a partir das ingerências propiciadas pela hegemonia por via da globalização e devem perseguir um caminho de humildade e reconhecimento face aos méritos que merece o início dum verdadeiro processo histórico de socialização, conforme aspiração do movimento de libertação!

O comportamento manifesto que existe neste momento, é que elas são as duas faces da mesma moeda e quantas vezes nem sequer têm em conta as lições de resistência que subsistem através do comportamento de muitos que animaram e animam a vitória dos escravos do Haiti como o movimento de libertação e a sua sequência: aqueles que tornam possível as pontes entre o passado, até aos nossos dias e em direcção ao futuro!

África só encontrará capacidades de enfrentar o subdesenvolvimento crónico a que está votada com o elitismo colocado longe de suas opções, com o aprofundamento da democracia, com o exercício de cidadania e a maior participação de todos na gestão da coisa pública, de forma a introduzir a socialização do estado, do poder e da sociedade.

Terá logicamente de se voltar sobre si, de reinterpretar os fenómenos históricos que tornaram um dia possível a rota dos escravos e hoje tornam possível as privilegiadas elites “contra natura”, sem se coibir de a nível de seus relacionamentos ombrearem com aqueles que entendem melhor que ninguém, por experiência própria, os expedientes históricos e contemporâneos da hegemonia.

Essa é uma das razões por que tenho valorizado o papel dos Antigos Combatentes e Veteranos da Pátria em Angola, o que continuarei a fazer, por que eles entendem melhor que ninguém a necessidade de paz e de justiça social!
 

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