O Paquistão é um parceiro estratégico dos Estados Unidos no combate ao terrorismo e também uma potência nuclear. Uma ruptura nessa já complicada relação pode trazer sérios riscos para o Ocidente, avaliam especialistas.
A raiva ainda pode ser sentida no Paquistão, onde multidões protestam contra o ataque da Otan e exigem um fim da aliança entre Islamabad e os Estados Unidos.
Ressentimentos nitidamente antiamericanos são sentidos tanto em passeatas organizadas por advogados e estudantes nas principais cidades do Paquistão, quanto nas promovidas por líderes tribais em Mohmand, o distrito onde 24 soldados paquistaneses foram mortos no último sábado por um ataque de helicópteros e caças da Otan a um posto fronteiriço. Slogans e faixas pediam a suspensão das relações com os EUA e, em alguns casos, até mesmo retaliação ao ataque.
No centro de Multan, membros do grupo Jamat-ud-Dawa, classificado como organização terrorista pela ONU, queimaram bandeiras dos EUA e um cartaz com o rosto do presidente norte-americano, Barack Obama. Enquanto em Peshawar, no noroeste, região tida como um bastião dos insurgentes da rede Al Qaeda e do Talibã, várias centenas de estudantes islâmicos gritavam "morte aos EUA" e "pare com a guerra contra o terror".
Pressão sobre o governo cresce
Os protestos impõem pressão crescente para que o governo paquistanês do primeiro-ministro Yusuf Raza Gilani mude sua posição pró-EUA e ouça as demandas dos manifestantes, que querem o bloqueio permanente da passagem de suprimentos para os 140 mil soldados da Otan no Afeganistão, a expulsão de todos os militares dos EUA presentes em bases no Paquistão e que o Conselho de Segurança da ONU tome providências a respeito das incursões fronteiriças dos EUA.
Os militares paquistaneses, detentores de uma posição de poder no país, rejeitam a versão da Otan para os eventos no fim de semana, refutando relatos de que a aliança agiu em legítima defesa, depois que suas tropas foram alvejadas a partir do lado paquistanês da fronteira.
Exigência de provas
A liderança militar do Paquistão pediu provas de que as tropas da Otan tenham sido feridas para sustentar essa afirmação, acrescentando que seus postos foram atacados por forças da Otan sete ou oito vezes durante os últimos três anos, matando um total de 72 soldados e oficiais e ferindo 250.
A ministra do Exterior do Paquistão, Hina Rabbani Khar, telefonou para a secretária de Estado dos EUA, Hillary Clinton, para transmitir um "profundo sentimento de indignação" devido aos ataques e para alertar sobre as consequências que eles podem ter sobre as relações entre as duas nações.
Xenia Dormandy, uma especialista em política externa norte-americana no think tank Chatham House, em Londres, acredita que o ataque da Otan venha a comprometer ainda mais a parceria estratégica entre EUA e Paquistão. Ela acredita que é hora de se repensar essa relação bilateral.
"Neste ano, temos visto uma série de conflitos surgirem entre os EUA e o Paquistão, os quais mostram os interesses divergentes existentes entre as duas nações", disse à Deutsche Welle, acrescentando que o incidente atual já provocou repercussões. Uma delas é o boicote paquistanês a uma conferência internacional sobre o futuro do Afeganistão programada para começar na próxima segunda-feira em Bonn, na Alemanha.
Dormandy lembra que, como retaliação imediata, o Paquistão fechou a via principal da Otan para abastecimento de suas tropas no Afeganistão e pediu que os EUA deem fim à base de operação de aviões não tripulados em seu território. Além disso, provavelmente o governo paquistanês sofrerá ainda mais pressão da população e da oposição para tomar novas medidas.
Parceria difícil, mas necessária
O sentimento antiamericano já era forte em muitas áreas do país antes do ataque da Otan, devido principalmente ao uso continuado de ataques de aviões não tripulados, os chamados drones, pelos EUA e pela Otan nas conturbadas áreas tribais ao longo da fronteira com o Afeganistão, de onde supostamente a Al Qaeda e o Talibã lançam seus ataques contra as tropas aliadas.
A operação que matou Osama bin Laden na cidade de Abbottabad também inflamou as tensões. Muitos paquistaneses ficaram irritados pelo fato de os EUA terem tomado uma medida unilateral em seu território.
Dormandy acredita que existem duas medidas que o Paquistão pode levar adiante que seriam muito prejudiciais aos interesses dos EUA no Afeganistão.
"Em primeiro lugar, o país poderia fechar definitivamente a rota através da qual cerca de 40% dos mantimentos e equipamentos da Otan e dos EUA entram no Afeganistão", disse ela. "Em segundo lugar, poderia continuar a trabalhar contra o sucesso dos EUA no Afeganistão, mantendo ou aumentando o envolvimento com grupos militantes como o grupo Haqanni ou o Talibã. Ambos seriam extremamente prejudiciais para a segurança no Afeganistão", avalia.
No entanto, acresceu Dormandy, o Paquistão é muito mais estrategicamente importante para os EUA do que o Afeganistão, um ponto que muitas vezes é esquecido pelos líderes políticos e militares norte-americanos. "Assegurar a estabilidade, a segurança e o crescimento do Paquistão deve ser a prioridade número 1 dos Estados Unidos na região", disse.
Um congelamento das relações com o Paquistão poderia tornar cada vez mais difícil o ataque a cerca de cem membros da Al Qaeda que ainda existem na região. "Ainda mais perigosa seria a ameaça de um Paquistão instável detentor da tecnologia nuclear", observou. "Os EUA precisam implementar uma nova política em relação ao país, para trabalhar com aqueles que têm interesses na estabilização da nação."
"Enquanto a guerra continuar no Afeganistão, enquanto houver uma ênfase especial na luta contra o extremismo islâmico, Washington não terá realmente uma alternativa a não ser cooperar com o Paquistão", avalia Jochen Hippler, cientista político e pesquisador convidado do Instituto para o Desenvolvimento e Paz da Universidade de Duisburg-Essen, em entrevista à Deutsche Welle.
"O Afeganistão é cercado por ex-repúblicas soviéticas ao norte e pelo Irã a oeste, todos países que, definitivamente, não são aliados dos EUA", diz Hippler. "O que resta é o Paquistão. Os EUA têm de cooperar com o governo paquistanês na luta contra o Talibã e contra a Al Qaeda no Afeganistão e no Paquistão."
China e Índia em alerta
Enquanto o ataque da Otan pode ter repercussões para as relações entre EUA e Paquistão, há preocupações de que o incidente possa acrescentar mais tensões no relacionamento entre Washington e a China, um aliado-chave do Paquistão.
O governo chinês afirmou que os ataques aéreos da Otan o deixou "profundamente chocado" e "preocupado", chamando os ataques de “violação da soberania independente e do território do Paquistão”. Pequim pediu uma investigação sobre o incidente, uma medida que também foi proposta tanto pela Otan como pela Casa Branca.
A China, principal fornecedor de armas ao Paquistão e principal fornecedor de tecnologia nuclear na forma de duas usinas de energia atômica, é vista como a mais forte aliada de Islamabad, um contrapeso para a rival regional Índia, que tem desenvolvido laços bastante estreitos com os Estados Unidos.
O Paquistão e a China também realizaram exercícios militares conjuntos no fim de semana, no mais recente exemplo da estreita cooperação militar entre os dois países. Ambos também se opõem aos planos dos EUA de manter bases no Afeganistão após 2014, ano em que se encerram as operações militares da coalizão na região.
Poucos motivos para medo
Mas os especialistas regionais não veem razão alguma para esperar que a China tome qualquer medida contra os EUA em apoio ao Paquistão.
"A China não vai fazer qualquer movimento contra os EUA ou a Otan como resultado disso", ressalta Raffaello Pantucci, professor visitante da Academia de Ciências Sociais de Xangai, em entrevista à Deutsche Welle. "Pequim vai simplesmente dizer que apoia o Paquistão e que vai apoiá-lo seja qual for o rumo que o país quiser tomar. Publicamente este é o mais longe que Pequim irá, e é improvável que a China queira transformar esta situação em uma oportunidade para atacar os EUA."
Já o cientista político Jochen Hippler acredita que Islamabad quer mostrar a Washington que o Paquistão pode sobreviver economicamente e militarmente sem a ajuda dos EUA, embora isso não seja realmente verdade. "Neste caso particular, há duas razões pelas quais o Paquistão se aproxima dos chineses. Em primeiro lugar, para mostrar a Pequim que o Paquistão é um verdadeiro aliado da China e não uma ameaça. Em segundo lugar, para mostrar a Washington que Islamabad não é um fantoche dos EUA."
Autor: Nick Amies (md) - Revisão: Carlos Albuquerque
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