Toda uma geração de trabalhadores, estudantes, sindicalistas e intelectuais foi "apagada" do mapa pela ditadura argentina. Hoje, 35 anos depois, o país é considerado um modelo na luta contra a impunidade.
Todo um aparato repressivo, cujos agentes não eram apenas militares, mas também civis, foi responsável por sequestros, torturas e assassinato de 30 mil pessoas, entre as quais grávidas e recém-nascidos na Argentina. A ditadura exercida pela junta militar impôs a censura em todas as expressões da arte, na produção literária, no cinema e na música do país. Dezenas de milhares de argentinos tiveram de se exilar para escapar da morte.
Desde 1983, os governos democráticos têm promovido ações para punir os responsáveis pelo desaparecimento de até 30 mil pessoas, pelo roubo de bens, pela criação de mais de 600 campos de concentração e o perverso plano de sequestro de recém-nascidos das mulheres em cativeiro, depois assassinadas. Os movimentos de direitos humanos e a sociedade civil, com artistas e intelectuais, geraram um amplo debate e uma abertura que levou à busca da verdade. Não fosse isso, a Justiça argentina não teria o êxito que atingiu.
Conscientização contra a impunidade
Ante a recusa das autoridades em dar-lhes uma resposta, em 30 de abril de 1977 um grupo de mães de desaparecidos começou a marchar em silêncio na Praça de Maio, em frente à sede do governo argentino, para questionar o paradeiro de seus filhos.
Os ditadores – e aqueles que negavam seus crimes – as chamaram de "loucas". Esta "loucura" felizmente contagiou outros. Assim nasceu o movimento Mães da Praça de Maio, ao qual se seguiu o das Avós da Praça de Maio, que procuravam seus netos nascidos durante o cativeiro de suas mães. Em 1995, juntou-se a elas o grupo H.I.J.O.S (Filhos pela Identidade e a Justiça, e contra o Esquecimento e o Silêncio, sigla que em espanhol também significa "filhos").
Além de exigir a condenação dos responsáveis pelos crimes, as organizações de direitos humanos na Argentina tentam reconstruir a história recente do país, para a recuperação da identidade em um amplo sentido, incluindo não só a restituição dos filhos desaparecidos às famílias legítimas, mas também um extenso programa integrado ao currículo escolar.
O objetivo é que "crianças e jovens tomem consciência do passado recente de seu país para sensibilizá-los sobre os valores democráticos contra a passividade ante qualquer tentativa de golpe de Estado", explicou Estela Barnes de Carlotto, presidente da associação Avós da Praça de Maio, em conversa com a Deutsche Welle. A luta pelos direitos humanos inclui ainda a produção cultural, a partir da qual compositores, cineastas e escritores oferecem um espaço de reflexão e reconstrução da identidade.
Uma longa jornada
Assim que a democracia foi restaurada na Argentina, em 1983, o então presidente Raúl Alfonsín ordenou a criação da Conadep (Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas), formado por um grupo de cidadãos proeminentes, cujo relatório "Nunca Mais" abriu as portas, em 1985, ao primeiro julgamento das três juntas militares.
Em 1986, no entanto, provavelmente pressionado pela cúpula militar, Alfonsín aprovou a Lei do Ponto Final e a Lei de Obediência Devida, que na realidade eram "leis de impunidade", permitindo a liberdade dos acusados. "Não há obediência devida, e sim obediência de vida" foi a palavra de ordem dos ativistas de direitos humanos na época.
Em 1989-1990, os indultos do então presidente Carlos Menem permitiram que estas leis continuassem em vigor, de forma que a "sociedade argentina vivesse na impunidade por 20 anos", assinalou Carlotto. "É preciso lembrar a convivência dos cidadãos com os assassinos, o que foi uma afronta à democracia em construção", salienta a presidente das Avós da Praça de Maio.
Outro marco importante na busca pelos desaparecidos foi a criação da Equipe Argentina de Antropologia Forense (EAAF), em 1984, por iniciativa das Mães da Praça de Maio. O grupo foi dirigido pelo norte-americano Clyde Snow, que desenvolveu técnicas de exumação de cadáveres em valas comuns e estudos de DNA, logo aplicados em outros países latino-americanos.
O Centro de Estudos Legais e Sociais (CELS) e a Assembleia Permanente de Direitos Humanos (APDH) argentinos desempenharam – e ainda desempenham – um papel-chave no julgamento de crimes contra a humanidade cometidos durante a ditadura.Também em 1984, foi criado o Banco Nacional de Dados Genéticos, "único no mundo", segundo Estela de Carlotto.
Ele nasceu de uma ideia das Avós da Praça de Maio, a fim de identificar, através do chamado "Índice de Abuelidad" (parentesco de avós), os bebês tomados por militares ou entregues ilegalmente para adoção. Mesmo sem o DNA dos pais, tornou-se possível a identificação dos netos desaparecidos durante a ditadura. O índice é obtido por meio de um estudo imunogenético e permite o registro do mapa genético para casos futuros, quando as avós já tiverem falecido.
Sociedade civil, a chave da democracia argentina
O êxito da Argentina no campo dos direitos humanos se baseia, segundo o advogado criminalista Wolfgang Kaleck, em dois fatores: "Em primeiro lugar, o forte movimento pelos direitos humanos que partiu das Mães da Praça de Maio e, em segundo, o uso estratégico que elas fizeram de instâncias políticas e jurídicas, não apenas locais, mas também internacionais, para denunciar crimes e buscar justiça".
Kaleck é membro do Centro Europeu de Direitos Humanos e Constitucionais e da Coalizão contra a Impunidade, organização que busca esclarecer desaparecimentos de alemães e descendentes de alemães durante a última ditadura na Argentina. Segundo Kaleck, a mobilização das organizações argentinas de direitos humanos no exterior, por exemplo junto à Corte Interamericana de Direitos Humanos, e em tribunais europeus fizeram com que a pressão fosse contínua na Argentina. O trabalho das organizações de direitos humanos e as exigências internacionais são "exemplares em todos os sentidos", afirma o advogado.
Segundo ele, isso levou à abertura de centenas de processos contra militares, policiais e outros responsáveis por crimes cometidos durante a ditadura. Nos últimos anos, houve quase 200 condenações de, entre outros, altos ex-oficiais militares.
Desde 2003, e também devido aos esforços do governo de Néstor Kirchner e de sua sucessora, Cristina Fernández de Kirchner, os esforços para esclarecer os crimes e resgatar a memória têm sido constantes.
Processamento e reparação
"Das 500 crianças que estimamos terem sido roubadas, já encontramos 105. Elas hoje estão adultas e podem viver sua identidade real", salientou a presidente das Avós da Praça de Maio.
O reconhecimento dado à Argentina na busca pela justiça para os crimes da ditadura se deve, segundo Estela de Carlotto, "ao trabalho do povo junto ao Estado para transformar cada centro de detenção clandestino em memorial, para legislar de forma a acabar com a impunidade, rejeitando as leis declaradas inconstitucionais, para restituir economicamente netos e vítimas em todos os sentidos, seja com moradias ou com subsídios".
Muito que fazer
Segundo Wolfgang Kaleck, o processamento legal dos crimes da ditadura na Argentina poderia ser acelerado se houvesse mais funcionários e salas de audiência. "Há melhorias que estão nas mãos dos políticos. Para acelerar os julgamentos, seria preciso mudar as regras que regem a ordem processual", sugere Kaleck.
Ele lembra que também deve ser responsabilizado quem colaborou com a ditadura, seja da sociedade civil ou do setor econômico. "Por exemplo, empresas alemãs. Uma delas é a Mercedes, em que desapareceram 16 sindicalistas, e a outra é Azúcar Ledesma, que também pactuou com os militares. Ambas as investigações estão em fase inicial, naturalmente devido às considerações políticas frente às empresas, que são muito poderosas", observa o advogado.
Entre as questões pendentes estão também desaparecimentos (como o da testemunha de acusação Julio López, em 2006), e casos de violência policial, cujas vítimas foram, em sua maioria, jovens de classe baixa e minorias marginalizadas.
Em 1992, foram criadas a Comissão de Familiares de Vítimas Indefesas da Violência Social (Cofavi), a Coordenadoria contra a Repressão Institucional e Policial (Correpi), e a Unidade Familiar e Vítimas contra Impunidade (Ufavici). Segundo a Correpi, entre 1983 e 1997, foram relatados 400 casos de pessoas assassinadas por forças de segurança.
Autora: Cristina Papaleo (rw) - Revisão: Carlos Albuquerque
Sem comentários:
Enviar um comentário