Helder Fernando – Hoje Macau
I
Quando há uns três anos a notícia vinda de Melbourne dizia que a cantora sofrera derrame cerebral, temeu-se imediatamente que a voz de Cesária, a sua presença nos palcos do mundo, tinham os dias contados. Teimosa como sempre, recuperou e insistiu – os sons da sua terra estavam antes de tudo, mesmo antes do final. No ano passado, mês de Maio, o coração falhou, a operação de urgência realizada em Paris não podia fazer muito mais. Ainda agendou mais umas apresentações, mas 3 meses depois, em Setembro, já com 70 anos, a embaixatriz da morna e de outros ritmos de Cabo Verde, contrariada, mandou anular concertos na Arménia, Roménia, França, Suíça, Reino Unido, escolhendo despedir-se e acolher-se. Sábado, Cesária Évora partiu perante a nossa eterna saudade.
Não é comum, nas biografias publicadas por todo o lado, ler-se que Cesária Évora actuou em Macau. Fê-lo salvo erro por duas vezes. Inesquecível para mim, pela inesperada e fraternal abertura, a entrevista que me deu (para a rádio), minutos antes de subir, a custo, os degraus dos bastidores em direcção ao palco do Fórum onde já a esperavam os músicos e, como sempre, olhar para a multidão como se os recebesse em casa, com aquele sorriso maroto que nos (en)cantava.
A língua de Cabo Verde, encantador crioulo, teve em Cesária um enorme instrumento de divulgação. A Ilha de S. Vicente, donde ela viajou para os palcos do mundo, está de luto; Cabo Verde está de luto, todos os que amam a música também. E África!
II
Um jornal em Portugal, o “i”, publicou há poucos dias, 17 de Dezembro, um texto assinado por um jornalista que já viveu e trabalhou em Macau, embora por período relativamente curto, no muito “paroquial” tempo da administração portuguesa. Um tempo em que alguns jornalistas portugueses foram alvo de gravíssimas perseguições e metidos num avião de regresso a Portugal – os que não puderam resistir ou não estiveram para isso. Creio que, felizmente, não foi o caso desse jornalista. Gente que ficou momentaneamente com a vida feita em farrapos, apenas porque eram desalinhados em relação às conveniências do poder. Na circunstância, actos de solidariedade activa entre a classe no seu colectivo, então, só por adivinhação. Curiosamente, perspectivando para o tempo presente, se me perguntarem digo que não sei, mas acredito.
Refiro brevemente, aqui, esta questão, porque a memória todos os dias se perde; como se Macau e, neste caso, os meios de comunicação social, só passassem a existir após o desembarque de algumas criaturas. As mesmas que desejarão memória e respeito quando o hoje se transformar em ontem. Depois do ano 2000 até ao presente, as relações estabelecidas pelo poder com a comunicação social de língua portuguesa – menciono apenas esta – têm sido bastante diferentes das do passado. Por variados motivos, é certo, sobre os quais também será conveniente reflectir.
Voltando ao texto intitulado “Liberdade Ameaçada em Macau”, o autor, que na semana passada parece que passou fugazmente por aqui, faz as considerações que entende e tem direito, evoca as “fontes” a que quis socorrer-se, amesquinha os profissionais locais, delibera o “atavismo da imprensa portuguesa” (não existe imprensa portuguesa em Macau, o que existe são jornais, rádio e televisão de Macau em língua portuguesa), considerando-a de “dimensão paroquial destinada a menos de 1% da população do território”. Estará esse jornalista habituado a ser lido por quantos por cento da população portuguesa em Portugal que lê o “i”? Esqueceu-se de fazer as contas.
Ainda mais estranho é este pedaço de prosa: “De facto, os últimos anos da presença de Portugal no Oriente nunca conseguiram fomentar uma identidade própria em Macau suficientemente musculada para enfrentar o futuro, contrariamente ao que os ingleses consolidaram na sua antiga colónia”. Decididamente, o homem não estava nos seus dias, acontece a todos. Por cá sabemos bem como o país Portugal está suficientemente musculado nos seus enfrentamentos com as troikas e companhia, e até para enfrentar o futuro que se adivinha muito risonho mesmo. E sabemos como a comunicação social anda musculada para enfrentar o seu próprio futuro e o emprego dos seus jornalistas. Mesmo sendo eu, lamentavelmente, um tipo de pouca-fé, não resisto: Valho-o Deus!
III
Em Portugal, os inteligentes que dizem governar, insistem em dizer às pessoas para resolverem os problemas de desemprego fora do País. Outro dia um ilustre secretário de estado disse aos jovens para irem lá para fora pois dentro não havia lugar para eles. Como se vai sabendo, é o regresso ao ter de ir “para a rua gritar que é já tempo d’embalar a trouxa e zarpar”.
Agora, é o chefe do governo que manda os professores emigrarem, pois não existem alternativas para os portugueses em Portugal. Porque não sairão eles, os que mandam os cidadãos para a emigração? O engraçado (com algum esforço) é a direcção do PS criticar todos os dias a troika. Haveria crédito se não se resumisse a um exercício espurco destinado a ofuscar, insultando, a memória dos cidadãos.
IV
A revista “Time” teve o mérito de escolher os manifestantes do mundo inteiro para tema de capa na semana passada, elegendo-os como personalidade do ano.
Realmente, neste ano agora no fim, foi dominante a quantidade, a abrangência e a forma cada vez mais dramática dos protestos à escala quase mundial. Independentemente de como se observem esses protestos. Muitas vezes, a “Time” destacou um estadista, alguém da cultura, das artes. Este ano não foi assim, pela razão de, convenhamos, ninguém ter individualmente sobressaído no meio de tantas manifestações que derrubaram governos, mas ainda não regimes. Algum de nós, há poucos anos e até meses, imaginaria o derrube, por vezes tão humilhante, de alguns líderes? E as manifestações que ainda não derrubaram governos ou regimes já estiveram mais longe de conseguir os objectivos. De Wall Street a Moscovo.
Sabemos todos que por entre os legitimados manifestantes há os provocadores profissionais, os infiltrados para lançar confusão e justificar os abusos de autoridade. Na génese, quem protesta não tem relação com “bandos de malfeitores” ou “bandidos desocupados” como alguns jornais norte-americanos chamam aos que se manifestam em Nova Iorque e em outras cidades do país. Há uma grande força motivadora nesses protestos: a ideia que muitos poderes têm em fazer regressar os cidadãos à época medieval, saindo os responsáveis impunes perante as trafulhices, as negociatas, as mentiras. Até parece confirmar-se a existência de uma “trilateral” que acorrenta o planeta para benefício de um tenebroso grupo de privilegiados.
Os tais “ventos de mudança” partiram, fundamentalmente, do norte do continente africano. Terão inspirado e motivado os crescentes protestos na Europa, nos Estados Unidos, na Rússia. Cresce a corrupção, aumenta o desemprego, o caos financeiro provocado pelos poderosos retira por completo a capacidade de os governos obedientes saírem das crises sem fim. O Médio Oriente vai mudar, já está muito lentamente a mudar. O ocidente ainda não. Lamentavelmente, parece que precisa de mais sangue.
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