Martinho Júnior, Luanda
1. Os últimos 20 anos têm sido para África muito difíceis, parecendo que o final da Guerra Fria proporcionou uma deriva em que largas regiões do continente foram sacudidas por sangrentos conflitos de toda a ordem, pelo espectro da fome, por vulnerabilidades que remontam à história, pela morte antecipada de milhões e milhões de seres e por cada vez mais profundos desequilíbrios climáticos e ambientais.
Os países africanos não estão a conseguir livrar-se dos últimos lugares nos Índices de Desenvolvimento Humano, por que as cadeias de opressão na sua essência não foram destruídas, resultando no elevado grau de subdesenvolvimento e de dependência, sem alternativas suficientes para vencer as enormes dificuldades que advêm dum passado de séculos.
A última década do século XX e a primeira do século XXI, a história universal foi marcada por três fenómenos concomitantes:
- O desaparecimento da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas e a consequente anemia do campo socialista.
- A emergência, seguindo a via capitalista, de nações e estados como o Brasil, na América do Sul, a Rússia, a China e a Índia, na Eurásia e a África do Sul, no cone sul de África.
- A hegemonia seguida duma relativa decadência das democracias representativas ocidentais, tendo os Estados Unidos à cabeça, malgrado o seu enorme poder militar e geo estratégico, redundando na crise visceral do capitalismo neo liberal em curso.
O desamparo africano reflecte as profundas alterações humanas e ambientais que se têm vindo a produzir a partir de outros continentes mais decisivos por que poderosos… por que as capacidades de África se assumir por si só em toda a plenitude, desde que se mantenha a lógica capitalista, são exíguas.
A sul do Sahara, a África do Sul é o único estado que produziu um estágio avançado, sob o ponto de vista de antropologia cultural, no que diz respeito ao conhecimento humano, às ciências e à tecnologia, mas isso em função de correntes elitistas que, no quadro do capitalismo global estão intimamente associadas à aristocracia financeira mundial e ao poderoso “lobby” da indústria mineral, desde a época de Cecil John Rhodes.
Todos os outros estados e nações são dependentes, não conseguindo galgar ainda do degrau de produtores primários de matérias primas no quadro duma civilização que tende cada vez mais a esgotar os recursos da Terra.
É preciso não esquecer que “a civilização” praticada a partir da Revolução Industrial e agora disseminada pelo império, é feita de engenharias e arquitecturas que afrontam o equilíbrio do próprio planeta.
2. O movimento de libertação moderno foi no século passado um factor de elevada esperança e superação para África: a luta contra as sequelas da escravatura, contra o colonialismo e o “apartheid” galvanizou todo o continente, conseguindo alcançar os objectivos “menores” de independência.
A enorme redução do campo socialista fragilizou a continuação da luta durante a última década do século XX.
A energia mobilizadora, a busca pelo sentido da vida, sofreu com isso e com a expressão cada vez maior da presença do império, com todo o cortejo de desígnios de rapina e as ideologias “de mercado” que, propiciando muitos lucros, digerem em suas entranhas as mentes e as vontades antes vocacionadas para a identidade, a afirmação, a resistência e a luta.
África sofre como nunca os impactos da globalização neo liberal que dão corpo e expressão ao império e timidamente procura reencontrar-se num universo hostil, onde os emergentes constituem os únicos apoios praticáveis para as aspirações legítimas dum continente desamparado.
Os riscos não têm parado de crescer para as frágeis nações africanas paridas do nada da colonização e a fragilização do movimento de libertação, votado ao sabor dos impactos que fluem da hegemonia, sustenta o que resta de sua resistência, identidade e afirmação.
3. Na África Austral as filosofias elitistas têm o seu espaço, propiciado pela lógica capitalista que devassa a sociedade humana com desequilíbrios, desigualdades e injustiças sociais endémicas desde finais do século XIX a partir da geo estratégia que constituiu e constitui a África do Sul.
O elitismo conseguiu sobreviver às mudanças na África do Sul e se antes a burguesia era branca, agora há espaço para a ascensão da burguesia negra, mas também para a sua contradição: o despertar da imensa mole de deserdados.
Em Angola o MPLA fez 50 anos e na África do Sul o ANC 100, mas os riscos e desafios colocam-se desde o interior das sociedades, por que são mais as aspirações legítimas não realizadas do que foi conseguido com as independências e o sistema de democracia representativa de um homem / um voto.
As próprias democracias representativas que são disseminadas a partir dos modelos da hegemonia, trazem os vírus propícios aos desequilíbrios, às desigualdades, às injustiças sociais, possibilitando o controlo das mentes e das vontades de forma vertical e transversal, ocupando o espaço vazio abandonado pela energia mobilizadora do movimento de libertação e pelo socialismo.
As “open societies” espalham o perfume das “revoluções coloridas”, onde os vínculos dos serviços de inteligência instrumentalizados pela hegemonia se sentem à vontade nos seus dinamismos e opções, modelando as instituições, as vontades menos avisadas e se possível o próprio poder.
As alternativas de cidadania e de democracia popular participativa sofrem a afronta, tendo enormes dificuldades para emergir do embrião que resulta da legítima aspiração à justiça social que foi sempre reconhecido nos “programas maiores” do movimento de libertação.
Aos povos da África Austral e ao movimento de libertação as opções tornam-se hoje todavia mais claras, como são mais evidentes as potencialidades das emergências.
É dentro do próprio movimento de libertação que se devem procurar as alternativas pois a rica história, já centenária na África do Sul, refere-se toda ela ao homem e muito em especial ao homem que sofreu todo o tipo de opressão, marginalidade e miséria.
Perante os riscos contemporâneos é o homem africano que deve dimensionar a resistência cultural, forjar a sua identidade e afirmação, reinterpretar a sua história e integrar os esforços e as vontades na construção das suas mais legítimas aspirações que têm sido proteladas ao longo de séculos.
O homem africano deve lutar pelo renascimento do continente dando sequência ao movimento de libertação e captando todo o seu potencial de energia mobilizadora, sabendo encontrar a partir dos suportes externos mais saudáveis as capacidades para superar obstáculos e riscos e isso torna-se substancialmente possível sobretudo na África Austral, propulsionando como nunca as capacidades que dão substância à SADC.
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