José Manuel Pureza – Diário de Notícias, opinião
A retórica da confiança e da estabilidade tem sido um dispositivo importantíssimo da ação política do Governo. "O caminho é restaurar a confiança. Porque nós só vamos conseguir crescer quando os investidores começarem a acreditar na recuperação." A fórmula, declinada em versões várias, mostra ao que vem: a dita confiança é seletiva, é a confiança dos "investidores". E a estabilidade virá, enfim, quando os ditos "investidores" tiverem a confiança toda.
Neste discurso há dois silêncios estridentes. O primeiro é o que cala a instabilidade indesmentível dos "investidores". O segundo é o que cala a falta de confiança crescente dos "não investidores" no seu próprio futuro. Vamos por partes.
A confiança dos mercados (versão José Sócrates) ou dos investidores (versão Passos Coelho) é uma questão de fé. Está difícil, não se vislumbra, mas os crentes estão certos de que um dia ela virá. E para antecipar essa vinda, os oficiantes do deus mercado oferecem os sacrifícios que forem necessários. E sobretudo os que forem desnecessários. Sacrifícios dos outros, claro, nunca dos próprios. E esse é precisamente um primeiro silêncio espesso deste tempo. O discurso da direita sobre a confiança faz-se para manter intocado algo que é, por definição, tudo menos digno de confiança: o primado dos mercados financeiros. É uma escolha ideológica disfarçada de imposição da história. Em vez de apontar para uma confiança sólida, socialmente partilhada, que implicaria medidas corajosas para poupar a sociedade às febres especulativas dos "investidores", o que o Governo nos vem dizer é que a confiança é algo reservado aos que vivem dessas febres, é a confiança deles a única que devemos salvaguardar. E que toda a política - isto é, todas as escolhas decisivas para a comunidade - se deve assumir como refém desse privilégio de alguns poucos.
Ora, o outro lado da confiança dos "investidores" é a perda de confiança dos "não investidores" na sua vida quotidiana e no futuro. Um trabalhador que vê o seu salário diminuído (quer pela baixa do custo horário do seu desempenho quer pela supressão de dias de férias e feriados), uma bolseira que tem a sua precariedade laboral eternizada, um desempregado cujo subsídio para que descontou lhe é reduzido, uma reformada que deixa de receber parte da pensão já de si paupérrima - todos experimentam atónitos o incumprimento dos compromissos elementares que a sociedade tinha com eles estabelecido. Há um contrato em que assentaram as nossas vidas e que é rasgado súbita e unilateralmente. Que confiança podemos ter? Diz-nos a direita que, como em todos os contratos, a alteração substancial das circunstâncias pode ditar a sua alteração. Pois seja. Mas porque é que só dita para os "não investidores"? Porque é que essa alteração substancial das circunstâncias não para de reforçar a satisfação de tudo quanto é vontade (real ou presumida) dos "investidores"?
Ontem mesmo era tornado público um estudo com uma conclusão preocupante: só pouco mais de metade dos portugueses acham que a democracia é melhor do que um governo autoritário. Essa é a expressão maior da perda de confiança da generalidade das pessoas - os "não investidores" - em que lhes será permitido ter uma vida digna. Que o mesmo estudo revele que 89% dos inquiridos entendem que o que é mesmo importante na democracia é haver um nível de vida digno para todos os cidadãos, mostra as razões fundas da desconfiança crescente na democracia. Para os "investidores" isto pode até ser uma boa notícia - um Estado autoritário dá-lhes garantias acrescidas de confiança.
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