quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Chile: Piñera apaga dos livros de história o que Pinochet escreveu com sangue




Christian Palma – Direto de Santiago – Carta Maior

Ao apagar das luzes de 2011, o governo direitista de Sebastian Piñera introduziu sorrateiramente uma mudança nos livros de história, na parte referente aos obscuros anos de Pinochet. Nos últimos 20 anos, ao menos duas gerações de estudantes chilenos aprenderam que o governo de Pinochet foi uma ditadura, mas, no final do ano passado, o governo de Piñera decidiu mudar esse conceito pelo de “regime militar”. O artigo é de Christian Palma.

A convivência ideológica no Chile é como uma delicada taça do melhor cristal: qualquer movimento inesperado e brusco ameaça quebrá-la. Isso ficou manifesto na última quarta-feira, quando se conheceu a mudança sorrateira realizada pelo governo de direita de Sebastian Piñera nos livros de história, na parte referente aos obscuros anos do ditador Pinochet. Nos últimos 20 anos, ao menos duas gerações de estudantes chilenos aprenderam que o governo de Pinochet foi uma ditadura, mas, no final do ano passado, o governo de Piñera decidiu mudar esse conceito pelo de “regime militar”.

Embora essa diferença não seja algo determinante no mundo acadêmico especializado em Ciências Políticas e historiografia, para a população chilena a mudança é diferente: representa a violação de um pacto com a memória história onde não há espaço para eufemismos. O governo de Pinochet foi uma ditadura com todas as letras, uma das mais sangrentas e repressivas da América Latina, onde a sociedade não pode decidir sobre o desenvolvimento que queria e teve que viver sob um terrorismo de Estado que a impediu de participar nas grandes decisões econômicas, políticas e sociais.

O pior de tudo é que as condições impostas pela ditadura pinochetista ainda perduram no Chile, com uma elite dominante que se nega a dar maiores espaços de participação aos trabalhadores. Por isso, a mudança arbitrária do governo foi considerada uma agressão para milhões de chilenos. Não se pode falar de regime militar, pois é um significado neutro para tantos anos de opressão e exploração.

Os chilenos tampouco esquecem que a mudança de ditadura para regime militar foi realizada em silêncio, a portas fechadas (como também ocorria nos tempos de Pinochet), quando o ano de 2011 estava terminando e no contexto das massivas mobilizações estudantis que exigem uma educação pública de qualidade e gratuita.

O problema veio a público no dia 9 de dezembro, quando o Conselho Nacional de Educação do Chile aprovou a proposta do governo para reduzir as horas de aulas de história e geografia do currículo escolar. No documento a expressão “ditadura militar” é substituída por “regime militar”, o que produziu um efeito borboleta que incendiou os ânimos dos chilenos.

Alejandro Goic é um dos conselheiros do Ministério da Educação. “Ninguém se apercebeu da mudança. Nem os especialistas, nem os conselheiros se deram conta quando se discutiu. É um tema sensível. E me parece que é preciso manter o termo ditadura. As ditaduras devem ser chamadas de ditaduras e as democracias de democracias.

Mas a água chegou ao rio, como se diz no Chile. O novo ministro de Educação, Harald Beyer, o terceiro da pasta em seis meses, recebeu fortes críticas, justificando a mudança de conceito e colocando mais gasolina no fogo: “As expressões são mais gerais...a de regime militar que a de ditadura”. Além disso, acrescentou que o debate “não tem a ver com apoiadores nem detratores, tem a ver com expressões que se usam habitualmente nestes currículos em distintas partes do mundo”. A frase foi dita no Palácio de La Moneda, o mesmo lugar onde morreu o ex-presidente Salvador Allende.

A polêmica também chegou ao Congresso chileno, onde como era de se esperar, o rechaço foi contundente por parte de quem sempre chamou os 17 anos de Pinochet de ditadura, enquanto que se registraram matizes entre parlamentares governistas: aqueles que procuram tomar distância de Pinochet rechaçaram a medida, e aqueles que ainda o defendem, aplaudiram.

Cristián Monckeberg, deputado direitista do partido Renovação Nacional, de onde saiu o presidente Sebastián Piñera, condenou a mudança semântica: “Se antes se chamava ditadura e agora passa a se chamar regime militar, mudança feita por alguns técnicos encerrados em um escritório, isso não vai mudar o curso da história. Eu prefiro que essa escolha de nomes seja feita pelos historiadores, os que escrevem, os que interpretam”, afirmou.

Mas na direita chilena ainda restam políticos que trabalharam para Pinochet, como o deputado Alberto Cardemil, também da Renovação Nacional, que defendeu a mudança de palavra. “É um esforço técnico e profissional do Ministério da Educação de dar uma versão equilibrada de nossa história”, disse, acrescentando que “os países precisam, com o passar do tempo, revisar sua história para dar uma versão equilibrada”.

A cereja do bolo foi colocada pelo deputado da União Democrata Independente (partido de ultra-direita), Iván Moreira, que sempre foi convidado à casa da família Pinochet. “O fato de se usar o termo ditadura é uma forma de estigmatizar um governo que entregou democraticamente o poder e isso não ocorreu em nenhuma ditadura do mundo, só no Chile, o que fala muito bem do espírito democrático do país”.

No twitter, a mudança de palavra fez explodir a rede social. O grupo de música chilena e reconhecido opositor a Pinochet, Inti Illimani, escreveu: “Voltam os eufemismos perversos da direita...FOI DITADURA!!! E PONTO. Pão, pão e vinho, vinho. PONTO!”.

Tradução: Katarina Peixoto

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