quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

COM OS SEM-ABRIGO NÃO HÁ NOVO ANO





Há muitos anos, na década de 1980, passei por Macau e impressionei-me com um facto. Numa cidade onde o dinheiro dos casinos imperava dando início a um novo ciclo de progresso e desenvolvimento, existia um dos locais mais visitados pelos amigos da noite. No Tap Seac, junto ao Hotel Estoril, uma discoteca proporcionava música, copos e mulheres até o sol raiar. Em frente à porta da discoteca, onde estacionavam os carros mais luxuosos da época, situavam-se umas escadas que davam acesso à artéria posicionada numa cota superior. Por baixo das escadas o facto surpresa, anormal, chocante. Dormia, melhor, vivia ali um homem rodeado de jornais velhos e de uma sarapilheira. O frio e a humidade de Dezembro não o preocupavam porque em cada noite deviam oferecer-lhe mais de duas dúzias de cervejas. Perguntei a razão de tal desiderato. “Era muito rico, faliu no casino, a família abandonou-o e vive aí das nossas esmolas… mas é caso único!”

Esta semana, ao visitar Lisboa, lembrei-me de Macau, da discoteca do Tap Seac, das escadas e do sem-abrigo chinês. Passei pelo Campo dos Mártires da Pátria e ainda estava lá um dos mártires. Debaixo de um alpendre, deitado sobre resmas de papelão, embrulhado em cobertores e jornais à volta do pescoço, saía fumo de cigarro daquele amontoado de sobras aquecedoras de uma falsa vivência. Era um sem-abrigo.

Mais à frente, sob as luxuosas salas pombalinas dos ministérios governamentais, em plenas arcadas do Terreiro do Paço, qual atracção turística, deparei com um ser humano enrolado em roupa velha, com os seus papelões de antigas encomendas oriundas sabe-se lá de que país exportador e com eles construiu uma espécie de caixote que o abrigava do frio. Era um sem-abrigo.

Ao percorrer a Avenida da Liberdade, um, dois, três homens deitados sobre a mármore das entradas de certos edifícios ou de lojas que encerram o luxo da moda promovida nas revistas da especialidade, ali dormiam por terem ficado desempregados, enveredado pelo consumo das drogas, pela mendicidade e até pelo simples acto de ajudar a arrumar um carro. Eram mais três sem-abrigo.

Na Praça do Duque de Saldanha, sim aquele que está a indicar aos lisboetas o caminho mais rápido para o trabalho, o Saldanha neto do Marquês de Pombal que se chamava João Carlos Gregório Domingos Vicente Francisco de Saldanha Oliveira e Daun, o mesmo que os milhares de automobilistas que por ali passam não fazem a mínima ideia que foi marechal do exército e quatro vezes primeiro-ministro, o mesmo que do alto do seu pedestal observa quantos portugueses desgraçadamente abandonados dormem nas ruas de um país qua ainda não encontrou o rumo necessário para pôr termo a uma das maiores lacunas sociais.

Em plena quadra de bons desejos, bons votos e boas festas, num tempo em que o egoísmo dos que mais podem despreza os que mais precisam, enquanto tivermos sem-abrigo ao nosso lado, não poderemos festejar estaa quadra de paz, de amizade e de solidariedade entre os homens. Festejar sim, quando o novo ano nos traga uma cama para todos os sem-abrigo.

Sem comentários:

Mais lidas da semana