segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Desumanidade em Marcha Destruição Massiva por Predadores e Especuladores (Parte I)




Arsénio Fermino de Pina – A Semana (cv), opinião

Nós, cabo-verdianos, temos tristes experiências e recordações sombrias de séculos de fome vivida na pele, nos ossos e nas entranhas que eliminaram milhares e milhares de pessoas no curso da nossa história, e mesmo em pleno século XX, quando já havia meios para ser evitada e combatida, e nada se fez. É por isso que sempre que se fala de fome, o cabo-verdiano reage, por a sentir e ter algo a dizer. É a minha reacção ao ler Destruction Massive – Géopolitique de la Faim (Destruição Massiva – Geopolítica da Fome) -, o último livro de Jean Ziegler, praticamente o seu relatório como primeiro relator especial das Nações Unidas para o Direito à Alimentação, cargo que desempenhou com alma e coração durante oito anos, percorrendo meio mundo e entrevistando um avultado número de individualidades de todos os credos, sentimentos, manhas e vícios. Livro essencial que recomendo a todos quantos, mormente no Terceiro Mundo, se interessam pela humanidade sofredora e buscam estratégias para combater a fome e a miséria.

As minhas recordações da fome vêm de tenra infância, da ilha do Fogo, 1941/ 1942, dessa fome devastadora que matou 20 % da população foguense – a população de Cabo Verde era, em 1940, de cerca de 186.000 habitantes, mas em 1950, de 147.000, o que nos dá uma ideia da mortandade na década de quarenta - relatada no livro do meu pai, O Processo de Hermano de Pina – Subsídios para a História da Fome em Cabo Verde, que pouca gente conhece, valorizado com um prefácio do colega Dr. Teixeira de Sousa e um posfácio dos filhos, este a ser publicado proximamente nas páginas da excelente revista lusófona publicada em Paris, Latitudes, com uma introdução do combativo conterrâneo pelos direitos dos nossos emigrantes, Luiz Silva, posfácio que nos dá conta de alguns aspectos que escaparam ao colega Teixeira de Sousa no seu prefácio ou ele desconhecia. Relembra-nos Osvaldo Lopes da Silva, no seu recente livro, Nos Tempos Da Minha Infância, vários aspectos esquecidos da história de Cabo Verde, mais em pormenor de Santiago, do tempo colonial no Estado Novo, apresentados com sentido de humor saudável e desmistificante, bastas vezes estórias jocosas de hábitos, usos e costumes, e outras factos reais, horrorosos, arrepiantes, que marcaram a sua infância.

Um artigo que publiquei no FORCV on line mereceu um comentário pertinente da parte de um conterrâneo (José Venâncio da Cruz, nome que não sei se real, por não ter obtido resposta ao tentar contactá-lo para agradecer), por eu citar vários bodonas em apoio do que escrevi, que me deu um exemplo de como, com um “pequeno extracto, com simplicidade mas com rasgo, sem suportes de ilustres cérebros, se pode ´ferir´, despertando e consciencializando espíritos, muitas vezes tão obscuros como o meu” : A letalidade atingiu as crianças de tenra idade para as quais não foram procurados socorros clínicos. Oriundos de mães pobres que, em regra, desconhecem o abc da higiene maternal e que têm de procurar o pão nosso de cada dia em trabalhos agrícolas em pontos distantes da ilha, descuram, por completo, os cuidados que têm obrigação de tributar às criancinhas. Impõe-se a criação de uma ´creche´, mas infelizmente a iniciativa particular reduz-se a zero. O espírito do bem-fazer está sendo substituído pelo de maledicência que sobe ao infinito. “Extracto de relatório burocrático e obrigatório do Delegado de Saúde da ilha Brava, de Janeiro de 1928, Dr. Hermano Fermino de Pina. Uma bofetada com luvas de seda dadas por um homem que sabia fazer as coisas. Simples. Chão. Forte. Que vive eternamente!”. Não sei onde o amigo Venâncio da Cruz, que burila com elegância e propriedade de linguagem a língua de Camões, foi desencantar esse relatório de uma época em que estava ainda longe de nascer e de vir a ser, também delegado de saúde nessa ilha, em condições não muito diferentes das do tempo do meu pai.

Talvez tenham sido essas experiências vividas que me fizeram dar prioridade à valência Nutrição no Projecto-Programa de Saúde Materno-Infantil e Planeamento Familiar de Cabo Verde, financiado pela Suécia, em1977, de que fui Director Nacional, por me ter apercebido de que era a mal-nutrição calórico-proteica, isto é, a ausência ou carência em nutrientes essenciais à vida e a consequente fome, a base da maior parte da patologia e mortalidade infantis em Cabo Verde, numa altura da nossa existência como Nação e Estado independente em que éramos bem poucos em número e qualificados na Saúde, e nem dispúnhamos de nutricionistas no país, o que me obrigou a armar-me em nutricionista aperfeiçoando os conhecimentos colhidos na disciplina do Mestre Prof. Guilherme Janz, no curso de Medicina Tropical e especialidades de Pediatria e Saúde Pública.

Outrossim, já conhecia as obras do grande mestre, o médico Josué de Castro – A Geografia da Fome e a Geopolítica da Fome -, de Malthus, René Dumond e outros estudiosos e nutricionistas que conheciam os problemas do Terceiro Mundo.

Para a introdução dos métodos modernos de planeamento familiar e controlo da natalidade inspirou-me o provérbio nordestino, citado por Josué de Castro, a mesa do pobre é magra, mas o leito da miséria é fecundo, que pode ser encontrado em vários artigos meus sobre o controlo da natalidade. Essa fecundidade, não por irresponsabilidade dos pobres, como se costuma classificar, é o meio natural para garantir a continuidade da espécie e a ajuda em braços na lavoura e outros ofícios que exigem esforço físico no trabalho, por a mortalidade infantil ser muitíssimo elevada entre gente pobre e sem apoios sociais. Tanto assim é que, logo que melhoram as condições de existência das populações com investimentos sociais (saúde, educação e algumas estruturas laborais) e económicos, começa a diminuir o número de filhos por casal, visto morrerem menos crianças em tenra idade e haver outros interesses e regalias a defender, usufruir e gozar e não exclusivamente a luta pela subsistência na miséria e o gozo da única liberdade consentida aos pobres, na obscuridade da noite, a fornicação, utilizando uma expressão bíblica. Pudemos constatar isso em Cabo Verde após a independência, a qual reabilitou e empolgou o país dotando-o de estruturas e meios com melhoria social e económica das populações a ponto de o índice de fecundidade ter passado de seis filhos por mulher, para, actualmente, menos de metade, mesmo mantendo-se ainda elevada a taxa de desemprego. A taxa de mortalidade infantil é a mais baixa da África, bem como a materna; o nosso índice de desenvolvimento humano dos mais elevados em África e de corrupção ao lado do de Botsuana e Seicheles, portanto, baixa.

Tinha razão nessa preocupação e empenhamento de privilegiar a nutrição, porque a nossa actuação permitiu modificar radicalmente a paisagem sanitária e nutricional das nossas crianças, a ponto de, actualmente, a mal-nutrição ter deixado de ser um problema de Saúde Pública e causa de mortalidade, haver recursos humanos qualificados, conhecimentos, instrumentos e meios para a sua prevenção e tratamento, embora nem todos os meios utilizados por nós próprios, incluindo produtos da nossa investigação, tenham sido, posteriormente, valorizados, como cheguei a demonstrar em documento dirigido ao Ministério da Saúde, ao regressar ao país após dez anos na Organização Mundial de Saúde (OMS). Infelizmente, a minha crítica não mereceu nenhuma reacção positiva por parte de quem tinha o dever e poder para mudar as coisas. Há, como costumo dizer, muito mais mãos de Judas de alguns no poder céleres a apagar velas no altar do desenvolvimento que não acenderam do que as que ajudam a acender ou reacender outras.

As mortandades escandalosas e criminosas deixaram de existir em Cabo Verde a partir da década de sessenta, precisamente a partir do início da luta de libertação das colónias portuguesas. A ordem do Ministério do Ultramar, portanto, do Governo Português, foi de não deixar morrer de fome nem uma cabra, dado que os movimentos de libertação (terroristas, na definição colonial) estavam activos nas Nações Unidas a “quererem comprometer o bom nome, a missão de expandir a fé e a acção civilizadora de Portugal nas suas províncias ultramarinas”.

Fui testemunha disso por ter chegado a Cabo Verde, já licenciado, em 1967. Trabalhei na Brava, São Vicente, Fogo e Santiago, já bem contaminado pelo vírus dos ideais de luta pela independência e em sintonia com as directrizes do PAIGC, que eu tinha trazido de Paris, aquando da passagem, em 1965, na tradicional viagem de fim de curso, em que contactei Olívio Pires, Jack Monteio, António St. Aubyn e Pedro Pires. O Partido aconselhava o regresso a Cabo Verde de todos os licenciados empenhados e progressistas, prevendo-se intensificação de actividades nacionalistas.

No Fogo, em 1971/72, fazia-se o controlo nutricional quase a olho dos trabalhadores nas estradas, nas chamadas “frentes de trabalho”, por nós próprios, e o Dr. Teixeira de Sousa periodicamente; estudo mais detalhado era realizado por missões do Instituto de Medina Tropical sob o controlo do Prof. Janz. Havia um “Programa de Apoio às Populações” com distribuição de alimentos (milho, feijão, óleo vegetal e leite magro em pó) em substituição de salário, e aos mais carenciados, a estes em quantidade suficiente para manter o metabolismo de base (em repouso), o que motivava, obviamente, por as pessoas estarem a trabalhar, magreza e manifestações de carência variada – pelagra, cegueira nocturna, loucura e doenças infecciosas dada a diminuição das resistências orgânicas – que tínhamos de combater, as mais visíveis da pele camufladas com vitaminas sob a forma injectável e em comprimidos. Mantinha-se a população ao nível limite de desnutrição, para evitar, como faz actualmente o governo israelita – hoje nas mãos de uma direita inútil (o Likud de Netanyahu) e de uma extrema-direita perigosa (liderada por Avigdor Lieberman, à base de imigrantes russos) - aos palestinianos da Banda de Gaza, deixando passar, através do rigoroso bloqueio feito, tão-somente o que evita uma fome generalizada escandalosa e visível pelas suas consequências que pudessem impressionar as organizações internacionais.

Quando morria alguém por fome, este diagnóstico, como causa de morte, era proibido; tinha-se de inventar uma outra causa: senilidade, diarreia, broncopneumonia, inanição, atrepsia e hidropsia (que muito pouca gente sabia o que era, na realidade manifestações de malnutrição grave, mormente em crianças), etc.

Gostaria de vos fazer um resumo do livro de Jean Ziegler, mas é tão denso de informações pertinentes, de denúncias corajosas de situações e instituições “respeitadas e respeitáveis” e de hipocrisias de outras, que o melhor é o lerem; considero-o um documento importante a conhecer e consultar por todos aqueles que se interessam pelos problemas do Terceiro Mundo, e não só, dado que os predadores e especuladores financeiros já estão por todo o lado. Irei limitar-me a apresentar-vos algumas das patifarias e crimes das multinacionais agro-alimentares, empresas, instituições e pessoas com elas bem e frutuosamente relacionadas e conluiadas que, de resto, tenho vindo dando conta aos meus leitores noutros escritos.

(continua proximamente)

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