Maria Cristiana Casimiro, professora de Português
A vivência em Timor-Leste marcou-a positivamente e, agora, rebela-se contra a tentativa de banir a língua portuguesa no país, nomeadamente pelas acções da mulher de Xanana Gusmão.
Quando decidiu ensinar português como segunda língua a estrangeiros?
Nasci em Nampula, Moçambique, e fui professora na Escola de Formação de Professores, em Maputo, tendo depois leccionado português na então República Democrática Alemã, na Escola de Amizade RDA-Moçambique. Em 2000, estava em Portugal quando pediram professores para Timor-Leste. Enviei o currículo, fiz um curso de formação para preparação e em Agosto desse ano tive a certeza de que iria, depois do Conselho Nacional da Resistência Timorense ter decidido que o português seria uma das línguas oficiais.
Quantas pessoas foram?
Fui num grupo de mais de 100 professores. Em Timor-Leste, fui professora durante três anos, em Oe-cusse primeiro e em Baucau nos dois anos seguintes, em todos os seus sub-distritos. Gosto mais de ensinar português como segunda língua ou língua estrangeira.
Recentemente foi lançado em Macau o livro “Lendas de Timor e Outras Histórias em Baucau”/IPOR. Recolha de textos editada em 2007, em Portugal, pela SACRE-Fundação Mariana Seixas. Como aconteceu esta recolha?
Em Baucau, ajudávamos outros organismos e colaborei na correcção da tradução para português de algumas lendas, seis ou sete, recolhidas pelo IRFED, um organismo francês de carácter cultural, que estava lá a fazer vários tipos de recolha, incluindo lendas.
Foi só essa a sua participação?
Fui autorizada a utilizar essas lendas com os meus formandos. Já falavam português, embora com alguma vergonha em fazê-lo publicamente As outras que constam no livro foram basicamente recolhidas por eles. São histórias antigas que achei serem motivadoras para eles, no sentido de escreverem alguma coisa sobre si próprios, depois de estudarmos em conjunto os textos. Com este desafio, ganharam confiança para escreverem em português as lendas que iam recolhendo.
Um trauma natural, esse receio em falar português, sabendo-se a violência invasora a que o povo timorense foi sujeito?
Foi realmente útil este trabalho de recolha e escrita das histórias. O que me levou a acreditar que seria possível motivá-los a escrever residiu principalmente num facto interessante: “palavra” em língua tétum é “lia fuan”, que significa “assunto de coração”. “Lia” é língua, “fuan” é coração. O tétum, tal como a língua malaia e as proto-malaias, possui muito este tipo de compostos extremamente poéticos. Como acontece no crioulo português de Malaca, por exemplo. Há cerca de oito anos, por causa dessa tendência para a linguagem poética, achei que teria sucesso levar por diante a escrita deste livro.
Teve que fazer muitas alterações?
As histórias descritas foram apenas alvo de algumas correcções ortográficas, deixando como estão algumas expressões próprias deles. Custou bastante, pois a princípio resistiram, mas acabaram por se sentirem motivados. Até poemas me trouxeram, e não tive coragem para recusar. Naturalmente que a maior parte desses poemas, em termos literários, não terá grande valor, mas demonstram bem o que eles sentiam em relação aos portugueses e à língua portuguesa.
Entendem que foi uma colonização diferente de outras?
Quando cheguei a Timor não senti qualquer distanciamento, como é natural existir em outras ex-colónias em relação ao cidadão do antigo país colonizador. Quando fui para Timor-Leste, falávamos muitas vezes desta realidade, eu e os meus formandos, sem considerandos sobre se há colonialismos melhores.
O que era diferente?
A realidade em Timor é que a repressão tinha, de certa forma, contornos diferentes, talvez pelo número de portugueses lá, pela distância, não sei. Mas, por exemplo, muitos portugueses é que aprendiam tétum. Não havia aquela política dos assimilados, das outras colónias, podendo eles mais facilmente manter as suas línguas e costumes. O linguista australiano Geoffrey Hull, que estudou a situação em Timor-Leste, afirma que não desapareceu qualquer língua ou dialecto local durante o tempo dos portugueses.
Ao contrário do que aconteceu na Indonésia e na Austrália.
Essas colonizações levaram ao desaparecimento de muitas línguas, quando era também proibida a manifestação de aspectos culturais e religiosos dos povos colonizados. E ao contrário também do que a Indonésia fez em Timor Ocidental, cujo mapa linguístico parece uma manta de retalhos. Geoffrey Hull dá muito este exemplo para justificar a escolha do português como língua oficial. Provavelmente foi o único australiano a defender essa escolha. Esta constatação, obviamente não pretende defender a colonização portuguesa, apenas mostrar uma realidade.
Voltando ao “Lendas de Timor”, nele perpassa muito do que menciona, ou seja, esse sentimento do povo timorense com os portugueses.
Os timorenses nunca nos culparam. Pelo contrário, alguns referiam até que Portugal não podia nada, sozinho, contra a Indonésia naquele tempo. E, depois do que foi a ocupação indonésia, a imagem da colonização portuguesa ficou muito mais amaciada.
Mesmo sabendo-se que a administração portuguesa não desenvolveu muito aquele território?
Tudo tem prós e contras. Pode dizer-se que a falta desse desenvolvimento, por um lado, também os terá deixado mais livres – sendo colonizados e estando sobre controlo português, mas não sendo obrigados a renegar as suas línguas, os seus costumes, os seus dirigentes, o respeito que era e é devido aos liurais.
Mantém-se intacta a relação dos timorenses com os portugueses?
Isso não posso responder, saí de lá há oito anos e meio, não faço ideia de como estará. Os contactos que mantenho com amigos e ex-alunos, não me deixam tirar conclusões, mas acredito que continuem a lembrar-se de muitos de nós, com carinho, pelos portugueses e pela língua. Há um pormenor significativo: um certo dia, quando falava com os meus formandos sobre provérbios portugueses e exemplifiquei com o “longe da vista, longe do coração”, eles disseram logo que não, que é “longe da vista, perto do coração”. Aprendi com eles este provérbio, porque é a ligação que sentem com Portugal.
A invasão indonésia terá potencializado esse sentimento?
Por certo que sim. Na página 136 da edição do IPOR do livro “Lendas de Timor e Outras Histórias em Baucau” está um poema, traduzido para português, que a dado passo diz assim: “Por causa da exigência ou direito/ Portugal deixou o seu filho sozinho/ nas mãos dos leões ferozes/ quando ainda era bebé. Por ausência do pai amado/ as bestas-feras da Indonésia/ atacaram o filho loron-sae/ levaram os netos ao inferno da Indonésia”.
Muito significativo.
E na parte quase final do mesmo poema lê-se: “O pai pegou na sua navalha, com espírito de herói/ gritando aos seus irmãos poderosos do mundo/ O mundo teve pena, o mundo veio com o pai/ para salvar os mauberes do inferno da Indonésia”. Aqui, o pai é Portugal. Os timorenses dizem muitas vezes, e em vários textos, que Portugal é que levou as forças das Nações Unidas para lá, etc., etc..
O que a motivou a levar por diante a ideia de reunir em livros estas lendas timorenses?
Primeiro, foi apenas o desejo de motivar os meus formandos. Pedi-lhes para escreverem as histórias que ouviam ou tinham conhecimento, pois para aprendermos uma língua necessitamos de a falar e de a escrever. Sabendo que eles tinham muito escondido dentro de si, o enorme trabalho de mobilização e a ideia do livro foram extremamente motivadores, a ponto de passarem a ter um entusiasmo extremamente comovente.
Isso está longe da ideia do timorense indolente.
Alguma ideia que se tem dessa indolência é errada. Os timorenses souberam a dor amarga da clandestinidade. Como em várias ocasiões os ouvi dizer: “muitos de nós ainda estão aprendendo a viver sem ser na clandestinidade, porque uma nossa forma de luta era não fazer o que nos diziam para fazer”. Como deixei registado na introdução do livro, tentei aprender a conhecer e a compreender este povo, forçado primeiro e depois habituado a viver clandestinamente.
A indolência era portanto uma resistência passiva.
Exactamente. A resistência passiva era a sua arma. Havendo motivação, tudo se movimenta, eles reagem assim, como afinal qualquer de nós quando somos motivados. Lembro-me que quando a 1 de Junho de 2003 inaugurámos a terceira biblioteca em Laga, depois de termos inaugurado outras em Baguia e em Quelicai, alguns portugueses mostraram-se surpreendidos com a capacidade de trabalho dos timorenses. Lá está, é a força motivadora sempre tão necessária.
Este livro já chegou aos timorenses?
Não terá chegado como eu o desejaria, que cada formando que escreveu recebesse um exemplar. Sei que chegou a algumas escolas, mas tenho contactos com alguns formandos que não receberam o livro. Por outro lado, sei que o padre João de Deus tem o livro. Na altura em que saiu, em 2007, pedi a Mariana Seixas, da Fundação com o mesmo nome, responsável por essa edição, que cada formando recebesse o livro, mas não foi assim que aconteceu.
Com esta nova edição, feita pelo IPOR, acha que mais timorenses terão acesso ao livro?
Espero que sim, e que possa mostrar a muitos como, há oito anos, eles falavam e escreviam tão bem. Sobretudo depois de a madame Gusmão [Kirsty, mulher de Xanana Gusmão] fazer afirmações muito pouco precisas em relação ao ensino do Português em Timor e, na minha opinião, estar a tentar tudo para retirar à língua portuguesa o papel que tem em Timor-Leste. Papel esse a que, aliás, os meus formando se referem, nos textos em que abordaram esse tema. A senhora não deve ter lido as lendas, que anulam bem algumas das suas afirmações.
Refere-se a uma dita reforma do ensino naquele país, para a qual existirá a estranha ideia de abolir a língua portuguesa?
Não sei bem o que se pretende, nem de onde vem, nem quem ganhará com esta e outras propostas de lei. O povo não vai ser, com certeza. Mas isso são outras histórias bem diferentes das que constam no livro de que temos estado a falar. Ninguém pode dizer que as pessoas não querem aprender o português ou não o falam, como já afirmou a madame Gusmão. As pessoas onde? Não era, com certeza, no distrito de Baucau, e a haver má vontade, será na capital e apenas em certos círculos.
A língua portuguesa assusta?
O português nunca pôs em risco o tétum, isto a propósito de ela dizer que tal medida seria para salvar o tétum?!? Pelo contrário, há uma ligação indissociável. Por exemplo, quando a diocese de Díli, ainda durante a invasão indonésia, foi obrigada a escolher entre o tétum e o bahasa, escolheu o tétum como língua litúrgica, e essa escolha salvou o português em Timor, podemos entender assim. Tendo vocabulário diminuído, houve necessidade de importar uma série de palavras do português, naturalmente adaptado. Isso terá ajudado a manter a língua portuguesa, criando essa relação entre as duas línguas, a que Geofrrey Hull se refere. De onde parte, exactamente, esta “má vontade”… não sei.
Quando saiu de Timor, que dimensão tinha o português aprendido nas escolas?
Nessa altura, as crianças nas escolas primárias falavam português perfeito. Tenho tudo isso demonstrado em vídeo.
Os autores da proposta terão força suficiente para banir a língua portuguesa?
Isso depende dos timorenses. O povo timorense tem muita força, como já demonstrou ao longo da sua História. É verdade que os jovens não falavam português até há uns anos. Como poderiam se era uma língua proibida durante os 25 anos de ocupação indonésia? Mas todos os meus formandos, professores primários, falavam. E os alunos dos meus formandos falavam também.
Gostava de voltar a Timor-Leste?
Por um lado gostava, por outro não sei se gostaria de ver o que por lá se passa. Mas tenho lá amigos em várias localidades que desejo muito voltar a ver. Timor foi e é muito importante para mim.
É optimista em relação a Timor, para mais agora com o negócio do petróleo?
Optimista em que sentido? Que há-de haver uns ricos e outros continuando a ser pobres?
Em relação à condução do país.
Não posso dizer que me sinto optimista quanto a isso, sobretudo na actual situação. Enquanto foi primeiro-ministro, Mari Alkatiri, embora não sendo um condutor de massas, como é o Xanana, desempenhou bem o cargo. Pagou o preço de ser muçulmano, por um lado, e, por outro, talvez tenha descurado um pouco a relação e a comunicação necessária com o interior, sobretudo nas montanhas, com os ex-guerrilheiros e a sua integração em Timor independente. Também lhe cobravam o facto de não ter lá estado, durante a guerra, mas o Ramos Horta também não esteve…
E o papel da Igreja Católica?
Muito importante. A Igreja teve um papel determinante, educativo até, e ajudou imenso os timorenses durante a ocupação. Depois de 2002, o papel da Igreja deveria ser diferente, já não aquela instituição que até ajudou a libertar o território. Trabalhei quase sempre ligada à Igreja, em escolas do Padre João de Deus e em organismos controlados pela diocese de Baucau e por D. Basílio do Nascimento, bispo de Baucau, por quem tenho um respeito enorme.
Quais as maiores dificuldades em Timor-Leste?
São tantas. A corrupção é uma delas. Outra será que quando apoiamos Timor enquanto comunidade internacional, esse apoio deveria ser mais dirigido às suas reais aspirações, não às que achamos serem melhores para eles. E, em vez de fazermos nós, prepará-los para assumir as rédeas e proporcionar-lhes condições para isso. Sei que provavelmente é demasiado idealista, mas é o meu pensamento.
O petróleo não irá ajudar decisivamente o desenvolvimento?
Irá beneficiar alguns. Não acredito que beneficiará a generalidade das pessoas, pelo menos por agora. Mas isso também é o que se passa sempre, não é?
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