António Marinho e Pinto – Jornal de Notícias, opinião
A Constituição da República Portuguesa estatui no seu artigo 32.º, n.º 5 que o processo criminal tem estrutura acusatória. Quer isto dizer que a função de julgar deve estar rigorosamente separada da função de acusar, ou seja, quem acusa não julga e quem julga não acusa. Por isso se criou uma magistratura própria para cada uma dessas funções: os magistrados do Ministério Público, enquanto titulares em exclusivo da acção penal, têm a função de dirigir as investigações criminais (levadas a cabo pela Polícia) e no final proferir decisão de acusação ou de arquivamento do processo; os juízes têm a função de julgar, ou seja, de condenar ou absolver os acusados.
Há, porém, uma terceira figura, o juiz de instrução, com a função, sobretudo, de garantir que as investigações e a própria decisão de acusação se processem em conformidade com as garantias legais e constitucionais que, muitas vezes, o zelo dos investigadores tende a menosprezar. Há actos de investigação criminal que só podem ser praticados por um juiz (buscas e apreensões em escritório de advogados ou consultórios médicos, p.e.) enquanto outros só podem ser praticados (por polícias ou magistrados do MP) desde que previamente autorizados por ele (escutas telefónicas e buscas domiciliárias, entre outros).
Uma das competências exclusivas do juiz é a aplicação durante as investigações das medidas de coacção, ou seja, medidas processuais que limitam transitoriamente certos direitos dos arguidos com vista a garantir a eficácia e/ou celeridade das investigações, bem como de medidas de garantia patrimonial, ou seja, medidas que visam garantir o efectivo pagamento das quantias a que o arguido venha a ser condenado em julgamento. A figura do juiz de instrução deve ser rigorosamente equidistante em relação aos fins da investigação e aos direitos fundamentais dos investigados.
Em alguns países mais desenvolvidos o juiz de instrução é designado como o juiz das liberdades, precisamente porque a sua principal função durante o inquérito é garantir os direitos fundamentais dos investigados. A boa administração da justiça penal exige que o juiz quando intervém na fase de inquérito, ou seja, das investigações, o faça para garantir que os actos aí praticados não violam os direitos fundamentais dos arguidos ou não os violam desproporcionadamente.
Em Portugal, porém, o juiz de instrução não é um verdadeiro juiz das liberdades porque, muitas vezes ele age durante o inquérito como uma espécie de longa manus do MP. E isso deve-se, sobretudo, à promiscuidade entre juízes e procuradores, não só ao nível dos respectivos estatutos funcionais, mas sobretudo no plano das suas actuações concretas. Uns e outros formam-se na mesma escola, têm as mesmas regalias profissionais e remuneratórias, podem transitar facilmente de uma magistratura para a outra, trabalham juntos nos tribunais, sentam-se lado a lado nos julgamentos e muitas vezes analisam uns com os outros aquilo que deveriam decidir sozinhos.
Apesar de tudo isso, o Governo apresentou recentemente uma proposta de alteração do Código de Processo Penal que agravará ainda mais essa promiscuidade funcional, pois admite que o juiz de instrução possa aplicar, durante as investigações, medidas de coacção e de garantia patrimonial mais graves do que as pedidas pelos próprios investigadores. Ou seja, o Governo pretende que o juiz, em vez de constituir uma garantia dos direitos dos cidadãos, se transforme numa ameaça a esses direitos, pois passaria a poder aplicar medidas mais graves do que as requeridas pelo MP, incluindo a prisão preventiva. Mesmo quando os investigadores não considerassem necessária a prisão preventiva o juiz poderia aplicá-la por mero arbítrio pessoal. Em vez de limitar os ímpetos persecutórios dos investigadores, o juiz passaria a exacerbá-los ainda mais, tudo numa fase processual em que os arguidos estão praticamente de pés e mãos atadas.
Caso uma tal medida seja aceite pelo Parlamento regressaríamos ao paradigma do juiz do tempo da ditadura, em que eram os juízes que dirigiam a investigação criminal. E, assim, aquele que nos regimes democráticos foi concebido como o juiz das liberdades acabaria transformado num juiz-polícia, como sucedia no Estado Novo.
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