sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

COLAPSO PRESIDENCIAL?




Manuel Maria Carrilho – Diário de Notícias, opinião - ontem

As dificuldades de Cavaco Silva não são matéria que se deva abordar com ligeireza, dada a importância nuclear das funções do Presidente da República no funcionamento da nossa democracia.

Mas a situação é grave. E é preciso dizê-lo claramente, porque Cavaco Silva está à beira de conseguir um feito inédito: o de se tornar, como todas as últimas sondagens e estudos de opinião têm mostrado, um Presidente impopular e sem credibilidade.

Cavaco Silva não pode cometer mais erros e tem de reparar os que cometeu. Não será fácil, mas, com cerca de quatro anos de mandato ainda por cumprir, é essencial que o faça - por si e por todos nós.

Como é que se chegou aqui? Pouco talhado para a função, Cavaco Silva apresentou-se em 2006 como um candidato que, mais do que uma visão de futuro para País, exibia um currículo e uma imagem de rigor que prometiam proteger-nos das derivas que o País tinha na memória mais recente.

A estratégia falhou. As derivas (diferentes, é verdade) continuaram, ele dedicou-se a minudências, esquecendo o essencial, e acabou a fazer o impensável no momento em que a crise nacional e internacional mais se agudizava: dar posse a um Governo minoritário, que é sempre - como se sabe - um governo a prazo, sem força, que pensa mais na sua sobrevivência do que nos problemas do País.

A crise, entretanto, mudou também a forma como muitos portugueses olham para a herança do cavaquismo. A reputação de Cavaco Silva assentava, em boa parte, na "sua" obra, realizada na "sua" década. Ora, o que agora se foi tornando evidente foi que muitas decisões tomadas entre 1985 e 1995 estão na origem, remota mas real, de grande parte dos problemas que hoje o País enfrenta.

O modelo de desenvolvimento que então se estabeleceu, essencialmente assente no betão e nos seus interesses, deixou-nos com escassos argumentos para enfrentar o futuro, e com o sabor amargo de se ter perdido uma oportunidade histórica para realmente mudar o País.

Perante isto, Cavaco Silva prometeu um segundo mandato revigorado por uma magistratura de influência "mais ativa". Contudo, depois de um previsível discurso de posse, que marcou a sua rutura com o Governo minoritário de José Sócrates, a ideia que foi dando foi mais de paralisia do que propriamente de mudança...

Esta acabou por vir do Governo da coligação PSD/PP, e com ela de novo Cavaco Silva perdeu o pé, multiplicando declarações contraditórias, entre o apoio sem convicção e a crítica sem consequências, acabando por escorregar depois em afirmações desajeitadas e de uma infelicidade quase provocadora, a propósito das suas pensões.

O problema - grave problema, repito - é que em vez de procurar arrepiar caminho, o que se impõe com urgência, Cavaco Silva parece algo esquivo à realidade, procurando proteger-se ora com tiques de autoridade, ora com poses de recolhimento, havendo já quem pressinta uma presidência doravante fechada ou, no mínimo - como aqui no DN escreveu Nuno Saraiva -, uma presidência bloqueada.

O Presidente tem de dar a volta à situação, percebendo que as exigências de escrutínio e de transparência que se tornaram comuns nas democracias contemporâneas, e se têm naturalmente radicalizado com a crise, introduziram novas dimensões na vida política, levando à erosão do argumento de autoridade, seja qual for a sua forma: de função, de representação ou de estatuto.

Nos tempos que correm, exercer o poder é difícil - mas incarná-lo não o é menos. Às conhecidas características da sociedade do espetáculo, que a democracia incorporou nas últimas décadas, juntam-se agora as de uma sociedade do contacto (de proximidade e de emoção), marcada por um individualismo sobretudo expressivo, e pelo progressivo desaparecimento de quase todas as formas de distância e de quase todos os dispositivos de protocolo.

A situação não se resolve, pois, com brejeirices, como se tivéssemos entrado na época do "tiro ao Cavaco", como disse Marcelo Rebelo de Sousa. O Presidente deve saber que (como há muito o estabeleceu a teoria dos speech acts) em política "dizer é fazer" - até porque, sendo professor, tem a dupla experiência dessa realidade. "Dizer" um disparate ou uma asneira é, em qualquer dessas funções, "fazer" um disparate ou uma asneira.

E agora? Agora, é preciso que o Presidente da República reinvente o seu estatuto, tanto no que diz como no que faz. Ajudaria se optasse pelo salário das suas funções, em detrimento das suas legítimas pensões. E ajudaria ainda mais se encontrasse a disponibilidade e a força interior necessárias para confraternizar regularmente com a angústia e o sofrimento dos portugueses. Só um golpe de asa genuinamente solidário evitará o colapso presidencial.


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