Fernando Santos – Jornal de Notícias, opinião
A abertura do ano judicial faz parte dos rituais (estéreis) da sociedade portuguesa.
Todos os anos, mais ou menos por esta altura, a cerimónia serve para várias personalidades do mundo da Justiça puxarem dos galões e fazerem um exercício pouco recomendável: diagnosticar males, mas endossando-os para terceiros.
A abertura do ano judicial transformou-se, ao fim e ao cabo, na verbalização de alguns ajustes de contas e numa feira de vaidades sem substrato capaz de modificar a péssima imagem que o cidadão comum dispõe da Justiça, peça fulcral para a existência de um verdadeiro Estado de Direito Democrático.
O cerimonial da abertura do ano judicial, ontem, não fugiu a essa triste regra de cada um disparar na direcção do parceiro do lado, sem qualquer rebuço, mesmo, na defesa de um certo corporativismo ou acirrar de rivalidades. Desejável seria aproveitar a oportunidade para estabelecer metas de entendimento e de modificação substancial de um sector cada vez menos confiável, disponibilizando-se todos para um balanço efectivo dentro de doze meses, assumindo então méritos e falhanços. Mas não. As palavras são sempre as mesmas, dicotómicas, incapazes de levar os cidadãos a acreditarem na universalidade do sistema e cada vez mais confundidos e desconfiados sobre o potencial risco de judicialização do Estado.
"A Justiça não está imune ao escrutínio do povo". Verdadeira, a conclusão ontem extraída pelo presidente da República deveria ser a primeira etapa para se credibilizar o sistema. Fica difícil é verificar como se é capaz de sair da teia de interesses instalados, uns legítimos outros nem tanto, e confundíveis em vários planos - sejam eles os das sistemáticas modificações estruturais das leis ao sabor de casos mediáticos ou do excessivo protagonismo de alguns agentes, ávidos por proceder à gestão cirúrgica de processos e, já agora, de violações lamentáveis do chamado segredo de Justiça.
Cada personalidade à sua maneira, ora denunciando a quebra de chamados direitos adquiridos - se não houvesse causa própria usariam o mesmo tom? - ora dando conta do mal-estar provocado pela mistura (explosiva) de interesses entre políticos e juízes e magistrados, confirmaram ontem o que já era uma convicção generalizada: dificilmente estes actores são capazes de se entender, de decidir longe dos holofotes sedentos de protagonismo. Cortar a direito, sem olhar a poderes, incluindo os fácticos, parece ser cada vez mais uma quimera. Não permitindo adivinhar algo de bom...
É verdade, o presidente da República apelou ao bom senso, ao recato, à eficiência do sistema. Gabe-se-lhe a boa intenção.
A retórica, naturalmente, fará o seu caminho, mas mais cedo do que tarde sairá arruinada.
Os vários protagonistas do sistema de Justiça em Portugal bem podem pregar teorias. O povo já não vai em conversa fiada. Sábio, aguarda por resoluções compreensíveis. Até lá, desespera. E legitimamente desconfia.
Assim como assim, é difícil explicar a um pobretanas ou remediado alguns paradoxos. Como o de um sem-abrigo ser condenado por tentar surripiar um champô e um polvo e entretanto, arrastando-se em incidentes processuais, continuarem por dar com as costas na prisão autores de crimes de colarinho branco danosos para a generalidade da sociedade...
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