A Verdade, em Tema de Fundo
Para o sociólogo Carlos Serra, ainda que por hipótese, só há uma forma de olhar para Samora e no contexto histórico que foi o seu. Ou seja, “não é possível dizer coisas daltónicas do género Samora foi isto ou Samora foi aquilo. Existiram múltiplas maneiras samoreanas de ser, maneiras que hoje sofrem a reelaboração da memória, grata ou ferida, reverenciosa ou agressiva. Mais do que uma pessoa, Samora foi um processo colectivo; mais do que ele, foi a história conflitual de uma parte do país; mais do que fracasso ou vitória, o samorismo foi e continua a ser uma maneira de problematizar um futuro diferente”, diz.
No que diz respeito à sua governação, Serra defende que “o êmbolo da governação samoreana” desde a luta de libertação foi o de mudar as relações sociais de produção e distribuição no país. “Todos os níveis, todos os empenhos, todos os entusiasmos, todos os problemas, todas as resistências, todos os dramas, todas as tragédias enfim, devem, em meu entender, ser enquadradas e analisadas por esse prisma, o prisma de uma desejada nova forma de viver, o prisma da revolução”.
Carisma de Samora
As condições actuais, no entender de Serra, justificam esse “amor” pela figura de Samora, sobretudo nos lugares onde a pobreza é mais mordaz. “Há uns anos atrás, uma pesquisa por mim conduzida mostrou que, nos bairros periféricos da cidade de Maputo, Samora surgia como uma espécie de messias, de figura forte, de figura nobre, como uma espécie de justiceiro, de redentor que, se fosse vivo, acabaria com o roubo, com os assaltos, com a malandragem, com a intranquilidade, com as injustiças sociais. Em certos momentos da vida, consoante as percepções que dela temos, especialmente se más forem, fazemos intervir simbolicamente nos nossos desejos de reequilíbrio social figuras do tipo samoreano, tornadas mitos redentores, alternativas de vida”, exemplifica.
Governação
(@Verdade) – Enumere aspectos positivos e negativos da governação de Samora.
(Carlos Serra) - Embutida no milenarismo, na intransigência e na desconfiança herdadas da dureza da luta armada, a governação samoreana (e do seu grupo revolucionário) foi o projecto de mudar a vida urbana e rural dos moçambicanos com voluntarismos típicos das eras revolucionárias e em permanente choque com resistências nacionais e internacionais. Esse projecto punha em causa, por um lado, os interesses de certos grupos nacionais para quem a independência era apenas a mera substituição dos colonos mantendo-se o sistema social herdado e, por outro, os interesses capitalistas e racistas de potências regionais como a África do Sul e a então Rodésia do Sul. Esse duplo constrangimento está na origem de medidas estatais autoritárias, de programas de contra-revolução armada do tipo Renamo e de muitos fenómenos de inquietação social e penúria de bens de consumo corrente.
(@Verdade) - Como seria a vida dos moçambicanos se ele estivesse vivo (e no poder, claro)?
(Carlos Serra) - Permita- -me dizer uma coisa sob forma de paradoxo: é mais fácil predizer o passado do que o futuro. Muito provavelmente Samora prosseguiria hoje o seu sonho, talvez com algumas correcções. A terminar: há hoje quem, no seu papel de arúspice especializado, sustente que foi com Samora que surgiram as primeiras medidas liberais. Com mais algum trabalho, jogando no oportunismo, os arúspices dirão um dia que o neoliberalismo actual é obra de Samora, que ele era, afinal, um capitalista nato. Então, para recordar uma série de um blogue meu, “a cada um segundo as suas necessidades, a cada um segundo o seu Samora”.
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