Carvalho da Silva – Jornal de Notícias, opinião
Não se encontrarão caminhos para a saída da crise com exercícios de quadratura do círculo, ou seja, com austeridade e enfraquecimento da democracia jamais se assegurará criação de emprego, valorização do trabalho que mobilize e responsabilize os cidadãos, crescimento económico com distribuição da riqueza que garanta o funcionamento do Estado Social, participação cívica e política dos cidadãos, soberania dos povos e relacionamento dos estados em pé de igualdade.
A direita (e extrema-direita) que ocupa o poder no geral dos países da Europa, e também em Portugal, vai adotando práticas em que procura desempenhar, simultaneamente, o papel de poder e de oposição. Trata-se de uma perigosa representação teatral.
A intervenção da social-democracia, partindo da constatação de que com as atuais políticas a situação é um beco sem saída, não se liberta dos compromissos desastrosos que traz do passado recente e entra, muitas vezes, nesse jogo de justificar a austeridade e o seu contrário.
Nos últimos dias, o Governo e o presidente da República (PR) tiveram posições bem elucidativas daquele duplo papel que a direita portuguesa está a tentar representar. Trata-se de uma atuação que faz desaparecer a dialética de que a democracia se alimenta.
O Governo português faz discursos exaltantes pelas "notas positivas" e elogios recebidos dos "capatazes dos mercados", a troika, convencendo o povo de que o empobrecimento é glorioso e salvífico! Utiliza argumentos manipulados para convencer os cidadãos da inevitabilidade ("justeza" e "coragem") da perda de direitos no trabalho (o direito do trabalho está a ser cilindrado), da eliminação de condições de acesso à justiça, à saúde, à proteção social, à educação.
Por outro lado, nos mais diversos ministérios e áreas, as políticas são executadas a partir de agendas obscuras ou escondidas.
Seguindo os procedimentos que os poderes europeus e nacionais dominantes utilizam na estruturação e funcionamento da troika que nos "governa", são criadas entidades, ou indigitados indivíduos, pretensamente prenhes de capacidade técnica e de autonomia, para "decidirem" o que se deve fazer nas finanças, na economia, nos processos de privatizações, na utilização de recursos naturais, na segurança social, na saúde e no ensino, esvaziando o debate político e, logo, escondendo dos cidadãos as verdadeiras dimensões e os conteúdos dos problemas.
É no quadro deste processo que deve ser analisada a entrevista do PR à TSF esta semana. Nela, o PR preocupa-se com os "novos pobres" (também se deve preocupar com os "velhos pobres", os que o são em gerações sucessivas) e diz que é impossível impor-lhes mais austeridade, denuncia a ausência de "supervisão multilateral" que devia ter sido exercida pela União Europeia (UE) e por entidades nacionais, manifesta surpresa por os "27 chefes de Estado e de Governo" se deixarem condicionar e até chantagear por "três agências de rating norte-americanas", e considera negativa a "visibilidade tipo diretório" assumida pela Alemanha e pela França.
Mas este PR tem promulgado as leis e apoiado as políticas que geram a pobreza. Cavaco Silva foi ao longo do seu percurso político um grande responsável pela desindustrialização do país e pelas promiscuidades entre poder económico e poder político e um dos mais persistentes vendedores das teorias do "bom aluno", para Portugal se submeter às políticas da UE e estratégias dos poderes dominantes. O PR utilizou um discurso de aceitação passiva da atuação das agências de rating e, no passado recente, não reagiu quando devia ao rumo das políticas da UE.
O PR procura interpretar as críticas de pessoas da sua área ideológica que estão preocupadas com as políticas seguidas e isso pode aparentar uma certa divisão/oposição entre PR e Governo. Mas como a sua postura é inconsequente, as posições assumidas naquela entrevista não resultam em mais do que a encenação de uma "oposição" descompressora.
O país está, assim, perante uma democracia de cada vez mais baixa intensidade que nos pode armadilhar o futuro.
Não é possível ter numa mesma política austeridade e o seu contrário!
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