Mali (2)
Antes de continuarmos com a questão Tuaregue no norte do Mali, será um sinal de bom senso apresentarmos uma perspetiva histórica ou, pelo menos, um relance do passado deste país, até para melhor entendermos a diversificação étnica e cultural da nação maliana.
Esta foi sempre uma região caracterizada por sucessivas tentativas de controlo do comércio trans-sahariano do ouro, sal e escravos. Os reinos do Sahara nunca foram de grande rigidez no que respeita às suas fronteiras e composição étnica. O primeiro dos grandes impérios desta região foi o Imperio do Gana, dominado pelos Sanink, povos de língua Mande, que estenderam os seus domínios através do Oeste africano desde o século VIII da nossa era até ao século XI, altura em que sucumbiram perante os Almorávidas.
Com o declínio Almorávida, provocado em grande parte por questões demográficas criadas pela baixa taxa de natalidade, surgiram diversos reinos, Até que no século XIII o príncipe Sundiata derrotou Sumanguru, o rei dos Sossos e formou aquele que seria um dos grandes impérios africanos, o Império do Mali. Sundiata conquista o Gana e estende o seu domínio até parte do Níger.
Este Império foi visitado em 1352, pelo grande poeta viajante Ibn Batuta, pouco depois da morte do príncipe Gongo Mussa, que em 1324, fora a Meca, em peregrinação, surpreendendo os árabes pela sua riqueza e pelo seu numeroso séquito. Ao regressar Gongo Mussa trouxe consigo vários intelectuais islâmicos, como Es Saheli, poeta e arquiteto, para além de inúmeros comerciantes do Magrebe. Durante a sua visita, Ibn Batuta constatou que o Império do Mali mantinha estreitos laços comerciais com Marrocos e o Egipto. Alem disso a fama deste Império chegara á Europa.
A decadência do Império do Mali acentua-se no século XV e em 1435 os Tuaregues apoderam-se de Tombuctu. Pouco mais tarde o reino tributário do Songai liberta-se e os Mossis penetram no território apoderando-se das províncias no Níger.
Após a queda do Império maliano os Songais assumem a hegemonia, instalando a capital do seu reino em Gao e estendendo-se para Sul e Oeste, com um poderoso exército e uma flotilha de guerra. O seu maior soberano foi Mohamed, que reinou entre 1493 e 1529, indo a Meca, em peregrinação em 1495, acompanhado por um imenso séquito, tendo gasto 300 mil peças de ouro em esmolas e ofertas. O califa Abássida do Egipto designou-o seu lugar-tenente.
Em finais do século XVI o Império Songai entra em conflito com o sultanato de Marraquexe, devido às jazidas de sal do Sara. O sultão de Marraquexe envia colunas de mercenários espanhóis, renegados, (ou teriam sido Armas, de origem hispano-marroquina, que ainda hoje habitam o norte do Mali?) derrotando facilmente o poderoso exército Songai, pilhando todo o território e impondo uma dominação brutal até 1660, ano em que o domínio marroquino desmoronou-se.
Os Bambaras, mandingas não islamizados, na região de Segu, proclamaram um reino independente e os Peules, formaram um reino, anexando Tombuctu, sendo derrotados nos finais do século XVIII pelos negros islâmicos Toucouleurs, que instauraram um estado teocrático de monarquia eletiva, até á anexação francesa, que colocou o Mali sob a autoridade administrativa do Senegal.
O período colonial francês foi caracterizado por revoltas e rebeliões sucessivas. A independência surge sob a forma da Federação do Mali (Senegal – Sudão) desfeita no auge da crise congolesa. O ex-Sudão Francês, Mali, proclama a independência a 12 de Setembro de 1960. Após a rutura com o Senegal os dirigentes malianos procuraram uma saída para o mar. Ora a Guiné-Conakri e o Mali formavam um conjunto contínuo, o que levou os dirigentes malianos a procurar soluções que permitissem a formação de um estado único.
Poucos dias após a independência Madeira Keita visitou a Guiné-Conakri e colocou a questão a Sekou Touré. Mas desse encontro ficou a ligação ferroviária Bamako-Conakri. Em Dezembro de 1960, em Conakri houve uma reunião entre os chefes de estado da Guiné, Mali e Gana. Em Abril de 1961 reuniram-se em Bamaco e em Julho do mesmo ano em Acra, onde adotaram uma Carta que agendava reuniões trimestrais. Mas só houve mais uma reunião, em Abril de 1962, sem a participação do Gana. Em Agosto desse ano foi projetada uma nova reunião tripartida, mas nunca chegou a realizar-se.
A presença francesa reaparece sob a forma dos acordos financeiros de 1967, reintegrando o Mali na zona do franco e impondo o regresso do franco maliano ao sistema de convertibilidade. A Union Sudanaise, o partido maliano, após a independência tomou algumas precauções nas relações com a França, mantendo-se uma colaboração técnica e algumas relações comerciais e financeiras. Aliás essas precauções foram evidentes no facto de as tropas francesas só terem abandonado o país, alguns meses depois da proclamação da independência.
A situação geográfica do Mali, o seu afastamento do mar, a sua interioridade, obriga a elevados custos de infraestruturas, o que não o torna atrativo para o investimento estrangeiro. Os recursos naturais malianos, por outro lado, permitiam assegurar a subsistência alimentar das populações sem temer as consequências de um bloqueio.
Na época colonial e no período imediato à independência, não existia burguesia nacional, mas no Outono de 1962, após a criação do franco maliano, os comerciantes manifestam-se em Bamaco. Apesar de extremamente minoritário o sector privado criava obstáculos á via de desenvolvimento não capitalista, tentada pelo Mali.
No congresso da US, de Setembro desse ano, o assunto é assinalado pelo secretário político, Idrissa Diarra. O assunto é analisado e refletido no relatório do congresso, onde se destaca o papel do comércio privado nacional e formas de o integrar na via socialista. Apesar disso a evolução económica e social traçada por este congresso sofre enormes desvios, o que leva às grandes manifestações de Julho de 1967 em Bamaco, contra os privilegiados, os proprietários de táxis, de vivendas e de quintas. O lento desenvolvimento económico, a cada vez maior diferenciação social, o aumento da divida externa, que obrigara a uma reaproximação com o Senegal neocolonialista de Senghor em 1964 e à reaproximação com a França, revelavam o mal-estar da grande maioria da população trabalhadora maliana.
A análise efetuada no congresso de 1962 esquecera-se do sector dos criadores e vendedores de gado, sector que proporcionava as fugas maciças de capital para o Gana e para o Alto Volta (Burkina Fasso). Este esquecimento está intimamente ligado às revoltas tuaregues sentidas neste período e barbaramente reprimidas. As manifestações de 1967, em Bamaco, revelavam a teia enorme da corrupção administrativa e política. Quando o presidente Modibo Keita assumiu em Agosto de 1967 que iria transformar a sua quinta em cooperativa era porque possuía uma, o que enfureceu ainda mais os manifestantes.
As cooperativas socialistas e os campos coletivos, baseados nas antigas estruturas comunitárias, não produziram resultados satisfatórios. É certo que existia uma cultura tradicional de trabalho coletivo, ao nível da família extensa e da aldeia, mas em terras repartidas. A ideia da propriedade coletiva da terra era estranha aos camponeses. Como resultado do insucesso desta política, o carácter administrativo e autoritário no relacionamento com os camponeses, acentua-se. Quando em 1968 as autoridades tentam relançar a medida de coletivização das terras, não levam em conta os erros cometidos anteriormente, limitando-se a relançar a norma administrativa e ampliando a repressão. Por outro lado, aos poucos, os camponeses descobrem que as melhores terras estão a ser possuídas por privilegiados, que utilizam direitos familiares privados, o mesmo sucedendo com as pescas de lago e rio e com as pastagens.
As dificuldades do Mali, mais do que noutros lados, estão intimamente ligadas ao insucesso da unidade africana. A situação geográfica do país leva-o a necessitar de medidas de integração para viabilizar o desenvolvimento. Um fator positivo é o da forte mobilização da opinião pública maliana, melhor formada que em muitos outros países africanos. Iniciaram-se pressões e formas de luta que se revelaram eficazes, obrigando a remodelações ministeriais e a alterações de políticas. Por exemplo, Madeira Keita, que em 1968, era membro do Comité de Defesa da Revolução, organismo que substituiu o antigo secretariado político da US após Julho de 1967, teve de defrontar durante 7 horas seguidas os estudantes da Ecole Normal Superieur de Bamaco, negociando com os mesmos, medidas para terminar com a corrupção de funcionários e do corpo docente e alteração de políticas educativas, para além de maior dinamização e participação das organizações estudantis na gestão escolar.
Em 19 de Novembro de 1968 o golpe militar, comandado por Moussa Traoré inicia um período de reforma económica, frustrado no entanto pela agitação social e pela seca prolongada, do período de 1968 a 1974, que trouxe consigo uma onda de fome, profundamente sentida na região norte. Os militares de Traoré governaram o país, pressionados pelos protestos estudantis e por três tentativas de golpe de estado.
Nos anos noventa emerge uma coesa oposição política e social e desencadeiam-se revoltas de tuaregues no norte. A este fator juntam-se as medidas restritivas do FMI, que impõem uma brutal politica económica que gerou uma imensa vaga de desemprego e aumentou ainda mais o fosso de diferenciação social. A vaga de repressão, imposta pelo regime de Traoré, apenas desencadeou a fúria popular levando às grandes manifestações e greves gerais de 1991, conhecidas por Revolução de Março. O tenente-coronel Amadou Touré anuncia na rádio, em 26 de Março desse ano a queda do regime de Traoré e uma das primeiras medidas do governo de transição foi a marcação de eleições multipartidárias.
Fontes:
Yves Benot - Ideologies des independences africaines; Librairie François Maspero.2eme edition, 1979
Denise Paulme – Les civilisations Africaines; PUF, 6eme edition.
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