Rui Peralta
O trânsito, as mulheres e a habitação
Sai, rectificando o nível de água no tanque mais o gasóleo para o gerador e fiz-me á estrada. Esperava-me uma temporalmente longa viajem de poucos quilómetros. Em Luanda a teoria da relatividade é uma prática efectiva. A relação espaço-tempo, embora não compreendida, é sentida por todos. Faz parte do dominante caos devidamente ordenado.
Um polícia mandou-me parar. Encostei e abri o vidro da viatura. “Documentos”ordenou o agente regulador de trânsito. “Boa tarde senhor agente”, respondi enquanto procurava os documentos, uma serie de talões várias vezes carimbados, exceptuando a carta de condução, único documento acabado. O agente verificou toda a documentação, mas parou num dos papéis: “Este documento está caducado, vais ter de me acompanhar á unidade” replicou o polícia, com um ar grave. “Awê! Caducado senhor agente? Nada! Me explica só”, continuei, com o meu ar inocente. O agente mostrou-me o documento e corrigi: “Me’mo do outro lado, está lá o último carimbo, olha só!” o agente virou o talão e confirmou, contrariado. “Siga”, ordenou o polícia, mandando parar outra viatura. Retomei a marcha e segui, ordenadamente na imensa fila de viaturas, que, ora num lento movimento, ora em momentos parados, expressavam esta concentracionária ordem caótica. Finalmente cheguei ao destino e acendi um cigarro, enquanto tentava estacionar. Alcançado o estacionamento, respirei fundo, e sai. Uma brisa quente, mas consoladora, premiou-me. Um miúdo veio perguntar se podia lavar o carro. Disse-lhe que não, mas que poderia ficar a olhar pela viatura, que eu não iria demorar. “Ya! Tá controlado cota!” respondeu o cadengue com o balde na mão. Aquele miúdo não era mais do que um certo momento presente de um futuro incerto. Possivelmente morreria antes de atingir a fase adulta, mas no fundo daquele olhar existia algo mais do que a sobrevivência. Talvez, ainda, um resto de esperança incompreendida.
Fiz a reunião e fui para casa. O trânsito de Luanda é um tratado de desespero para os poucos que trabalham. Esta é uma cidade para passeio. Os funcionários passeiam-se de carro o dia inteiro, as mulheres passeiam-se nos carros oferecidos pelos amantes, os motoristas passeiam os chineses, libaneses, portugueses e outros estrangeiros em visitas de negócios, os taxistas, vulgo candongueiros, demonstram as suas habilidades rodoviárias, de uma forma frenética, na busca incansável por dinheiro, os chamados transportes colectivos e os seus autocarros inadequados, aparecem nas ruas mais estreitas e inconcebíveis para a sua circulação, os camiões do lixo não têm horários de recolha, os contentores circulam a toda a hora, os carros do executivo transportam ruidosamente os respectivos ministros, assim como as viaturas atribuídas aos deputados. Quando a Presidência sai á rua, este tratado do desespero circulante transforma-se num desespero maior, estacionário. Para combater o desespero, os cidadãos rodoviários metamorfoseiam-se em zombies idiotas, abanando as cabecitas ao som da música que sai pelos altifalantes das suas viaturas ou colocando um ar carrancudo, mas de um carrancudo vazio, que não tem nada para exprimir, a não ser o seu rosto carrancudo. Os 20 minutos transformam-se em duas horas e o tempo fica mole, como nos quadros do Salvador Dali.
O tempo, na estrutura mental banto, é bidimensional. Existe o passado, um imenso macro tempo e o presente, um efémero micro tempo, mas o futuro, a terceira dimensão temporal, é inexistente. É vivido o dia-a-dia, o presente, a pequena esfera do micro tempo, mas essa vivência não é projectada numa outra esfera temporal, o futuro, mas sim absorvida, ao fim de gerações, pelo macro tempo, através do mecanismo ideológico deste, a tradição. Quando finalmente cheguei a casa ainda tinha de subir seis andares (o elevador já tinha desaparecido nas brumas da memória). Como não havia luz nem água, uma vez que as respectivas companhias estavam constantemente a braços, numa luta continuamente infrutífera, com problemas técnicos, havia que ligar o gerador. Relaxei e preparei-me para subir, suadamente, até ao sexto andar.
Lá subi e lá cheguei, transpirado. O ar condicionado estava ligado e a casa sentia-se fresca. Sentei-me no sofá e li durante uma hora, completamente absorvido, até que o cansaço sobrepôs-se ao interesse. Marquei a página do manuscrito, espreguicei-me, acendi um cigarro e saboreei-o até ao fim. Um bom banho de sais era o que estava a necessitar. Comecei os preparativos e Teo, o gato, afastou-se rapidamente deste ritual de banho. Entrei na banheira e deitei-me, ficando apenas a cabeça de fora, observando o tecto. A infiltração, proveniente do andar de cima, provocava uma mancha que ia dilatando. Já tivera esse problema na sala e resolvi a maka á minha custa. A vizinhança de cima fazia orelhas moucas e tive que puxar os cordões á bolsa perante o olhar idiota, cinicamente idiota, dos meus vizinhos. Respirei fundo. A ira atenuava-se sob o efeito do banho. Amanhã mesmo iria resolver a maka da infiltração mas de certeza que desta vez o tipo de cima não vai ficar a rir. Pensemos em coisas agradáveis…
As mulheres… O instinto maternal leva-as a uma relação de posse. Possuem e são possuídas. Eu sou a mulher dele e ele é o meu homem! É assim que a coisa é vista pelo lado delas. Por sua vez os homens, devido a terem uma educação assente nos valores patriarcais, desenvolvem uma subcultura nas relações com as mulheres que é o vulgarmente designado machismo. O machismo tem vários níveis, desde o mais vago ao mais acentuado e faz com que os homens conceptualizam as mulheres como objecto de posse, mesmo que não aceitem esse conceito. Mas, na generalidade dos casos, são eles os objectos de posse das mulheres. Elas são seres sagazes e tecem, como as aranhas, longas teias.
A título de exemplo vejam o louva-a-deus. Muito mais pequeno que a fêmea, o macho perde, literalmente, a cabeça. Tudo começa com um ritual que cria a ilusão de que o macho louva-a-deus controla a situação e seduz a fêmea. Mas é apenas uma ilusão. Para a fêmea louva-a-deus tudo isto faz parte de um jogo com perdedor predestinado. Após a consumação do acto a fêmea arranca a cabeça do macho e os restos deste servirão para alimentar a sua prole. Felizmente poucas são as mulheres com o comportamento das fêmeas do louva-a-deus. A grande maioria prefere a estratégia da aranha, ou seja, o enredo da teia.
Prefiro as mulheres ditas independentes, casadas ou com uma relação de compromisso com outro, para que não possam compor devidamente a teia, pois tornam-se cúmplices de uma relação clandestina o que, de alguma maneira, gera nelas sentimentos de culpa, vergonha e outras patetices que têm a ver com a traição. Relações superficiais? Ocasionais? Medo de assumir uma relação? Nunca posicionei-me nesses termos e não tenciono responder a essas questões, ou discutir o assunto, num divã psicanalítico. Basta-me o encontro, aquele momento animal, selvagem, de choque, em que os corpos suam e tremem de paixão frenética e irracional. È nesse momento que me identifico com Deus, no meio dos fortes amplexos gerados pelo prazer carnal. Depois, após o clímax, sobrevém o ateísmo da amizade e da política.
Mulheres… O género mais inteligente da espécie! Um dos processos mais interessantes da Revolução em Angola foi o papel da mulher. As mulheres assumiram um protagonismo tal que tornaram-se mais independentes nas suas escolhas do que o resto da Pátria. Aprenderam rapidamente a esperteza da sobrevivência e souberam adequar-se aos tempos. Quando a Revolução descambou numa coisa amorfa elas lideraram o processo. Nas calmas! Cornearam os esposos, souberam ser mães, passearam com os amigos, extorquiram os amantes, responsabilizaram-se pela sobrevivência quando estavam na pobreza, pelo enriquecimento quando provinham de meios mais favorecidos ou tinham casado, ou amantizado, com homens desse meio. Não deixaram de frequentar a militância, nem as igrejas, mas empinaram bem alto o nariz e são, sem sombra de dúvida, o símbolo mais elucidativo da Nação. Uma vez, num avião que vinha de Lisboa, uma hospedeira, ao entregar aqueles papéis para os estrangeiros preencherem, perguntou a uma senhora: “É Angolana?” A resposta da senhora foi rápida e de bom som: “Sou altamente angolana!” Essa expressão ficou gravada para sempre na minha memória. Altamente Angolana! Nunca ouvi um homem dizer: Sou altamente Angolano! Não! Quanto muito os homens ficam-se pelos clichés patrióticos do nacionalismo presidencialista obscuramente difuso que reina neste mundo e no outro ou pela bajulação própria dos pedintes. Mas elas não! Elas assumem de forma elevada, altiva, a sua identidade. Altamente Angolana! Nesta simples afirmação consta todo o conteúdo das mulheres de Angola.
Saí do banho, já completamente descontraído. Sequei-me e coloquei a toalha á cintura, dirigindo-me para a sala, onde me sentei, preguiçosamente, no sofá a ver televisão e a comer batatas fritas. Servi-me um whisky com gelo e fui mudando, aleatoriamente, os canais televisivos enquanto pensava na minha nova casa. Necessitava de mudar de casa. Sou um sortudo privilegiado por dar-me a estes luxos pois a grande maioria não pode pensar nestes termos.
Uma casa nova em Talatona … Era capaz de ser uma boa solução. Iria apenas duas vezes por semana ao escritório e trabalharia mais em casa. Teria de equacionar uma serie de factores, fazer uma pesquisa… Ou - porque não? - comprar um terreno e construir!? Não! Isso é uma chatice pegada! Rouba muito tempo! O melhor mesmo é uma coisa já feita! É mais caro mas ganha-se no tempo e é menos stressante! Telefonei de imediato ao meu tio que é sócio de um banco bué que me disse que sim. “Está á vontade que assino o bilhete e vais lá buscar a bufunfa. Contigo não há makas!”
Ainda era cedo e decidi sair. Dei uma volta pela Ilha e entrei num dos muitos bares, restaurantes esplanadas, junto á praia. Era fim de tarde, apetecia-me beber e conversar com gente. Alguém me perguntou se já tinha encontrado o terreno. “Ainda”, respondi, apreciando a frescura da cerveja. “Mas queres terreno ou já casa feita, num condomínio?”, voltou o meu amigo á carga. “Repara:”, disse-lhe, “um terreno permite-me construir a casa como eu quero. Essa é a grande vantagem. Mas teria de ser um terreno numa área distante da cidade, para sair a um preço que me liberte orçamento para a construção. Ora, tudo isto, acarreta desgostos, despesas e dores de cabeça. A fase de construção, a fase do saneamento básico, os acabamentos, a água e a luz, o processo burocrático, as gasosas, enfim toda uma serie de despesas variáveis, não contabilizadas no período de planeamento. Tudo isto sempre com o risco de, quando tudo tiver processado, morrermos com um ataque cardíaco, na conclusão da análise de custos, ou, na melhor das hipóteses, aparecer um tipo qualquer a bater-te á porta, cheio de medalhas de honra e divisas de general de não sei quantas estrelas e luas reclamando a propriedade.” Bebi um gole de cerveja e continuei. “ Por sua vez, ao comprar uma casa num condomínio, poupo todos esses desgastes, fiscos, morais, psíquicos e financeiros, embora fique com uma estrutura que não foi concebida a meu gosto.” “É verdade”, retorquiu o amigo, pensativo. “Tens de pesar os prós e os contras. De qualquer forma quando te decidires fala comigo. A propósito: o que vais fazer com o teu actual apartamento?” “ Alugá-lo”, respondi de imediato. “Apita”, despediu-se o amigo.
A caminho de casa optei pelo condomínio. Os condomínios cresceram como cogumelos em torno de Luanda. Produtos para a classe média alta e para as elites, com algumas ilhas para a incipiente e incerta classe média-baixa, inacessíveis aos bolsos rotos, estas construções constituem uma das muitas formas de não resolver coisa nenhuma. Ficam para ali, como bolhas de isolamento, onde as aparências e a ilusão são as palavras de ordem. Os mais ricos usufruem-nas de diversas formas, servindo muita vez de 3ª, 4ª ou 5ª habitação, arrendando-as, ou utilizando-as como refúgio de alguns fins-de-semana. Quanto á classe média alta permite-lhe um elevado exclusivismo que os seus componentes adoram. As classes médias mais abaixo, gradualmente, ostentam outras prioridades. Para uns sectores representa uma forma de se passearem num infindável viver com qualidade, para outros representa um sacrifício compensatório. Depois, todos, mais ricos, ricos e menos ricos, encontram-se no caminho e percorrem as filas da manhã até chegarem á cidade, peregrinação repetida no sentido inverso durante a tarde, saltitando por vastas zonas de musseques, habitados por trabalhadores, desempregados, bons malandros e malfeitores, ausentes e delinquentes, velhos arrastando-se e jovens de olhar vazio, mulheres fazendo pela vida e mulheres de vida feita, ladrões e polícias.
Os condomínios são sempre coisas estandardizadas, onde a própria noção de personalização é estandardizada. As habitações eram razoáveis e minimamente interessantes. Os preços pouco racionais, um pouco a caminharem para a fronteira do absurdo, o que é absolutamente normal nas economias de contentores mais avançadas, as economias de casino-contentor, forma de transição de uma economia geradora de pobreza para uma economia de manutenção da pobreza.
Concluindo: acabei por ficar com uma coisa chamada T3, que tem piscina, garagem e jardim, para além de um muro que garante a privacidade de um espaço que estava inserido num microuniverso de privacidade. Privacidade dentro da privacidade foi das poucas coisas que me agradaram. Só que comprar uma casa para habitar, não é, ao contrário da opinião geral, adquirir um activo. Os activos são investimentos que nos garantem receitas. Ora a aquisição de habitação é uma fonte de despesas. Hipotecas, empréstimos, escrituras, impostos, taxas, recheios, decoração, alterações...tudo despesas, nada de receitas. Para ser um activo a casa tem de ser vendida ou arrendada. Só então poderá dizer-se que foi ou não um bom investimento, pois este só poderá ser qualificado no acto de rentabilização e não no acto de compra. Estou ciente de que adquiri um passivo.
Á priori o Homem não devia ter domos. O domos é uma consequência da sedentarização, embora tenha começado no nomadismo. O Homem caminhante transportava a casa para onde quer que fosse. Talvez numa fase anterior o Homem fosse um ocupador de espaços, caminhasse sobre a Terra toda e pernoitasse ou permanecesse durante algum tempo num determinado espaço e que depois partisse e assim vivesse. Mas a livre tarefa da ocupação de espaços deu lugar a actividade de andar com a casa atrás. E este foi, sem dúvida, o momento inicial da sedentarização, onde esta se começou a sedimentar no espírito humano. As casas tornaram-se cada vez mais complexas, mais pesadas, maiores e eis que nasce a habitação fixa, com toda a sua carga tenebrosa de responsabilidade familiar, obrigações, fetiches e todas as coisas que nos levaram ao que somos hoje no presente, enquanto espécie política.
Cidade, cidadania, polis, politica…. Urbanismo… Será que os abutres das imobiliárias também andam atrás dos nómadas?
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