Najla Passos – Carta Maior
Em audiência, parlamentares ouviram testemunhos sobre o extermínio, entre 1968 e 1981, de pelo menos dois mil índios waimiri-atroari. Ainda não “pacificados”, eles resistiram à construção da BR-174 nas suas terras e, por isso, chegaram a ser tratados como guerrilheiros pelos militares. “Que pó é esse que civilizado joga do avião e queima kiña por dentro?”, perguntavam eles ao ex-missionário e indigenista Egydio Schwade.
Brasília - “Que pó é esse que civilizado joga do avião e queima kiña por dentro?”. A pergunta foi feita sucessivas vezes ao ex-missionário e indigenista Egydio Schwade que, na década de 1980, trabalhou com a alfabetização de índios waimiri-atroari (ou kiña, como eles se alto denominam), no meio da floresta amazônica, no estado do Amazonas. Schwade não sabia a resposta. “Seria napalm?”, questionava-se. Ainda hoje não tem certeza. Mas está convicto que, entre 1968 e 1981, a etnia vivenciou um massacre que lhe custou pelo menos duas mil vidas. E que a responsabilidade por essas mortes está diretamente ligada aos mesmos agentes da Ditadura Militar que executaram comunistas, estudantes e camponeses contrários ao regime. Para ele e outros militantes das causas indígenas e dos direitos humanos, esta também é uma história que precisa ser esclarecida pela Comissão Nacional da Verdade, que teve seus integrantes indicados nesta quinta-feira pela presidenta Dilma Roussef.
O indigenista conta que, durante as aulas de alfabetização, eram comuns os desenhos de crianças que mostravam aviões sobrevoando as aldeias. Os relatos sobre as mortes que sucediam a esses rasantes também eram constantes. Registros históricos sobre a população waimiri-atroari comprovam a redução populacional assustadora. Em 1906, o pesquisador alemão Jorge Hübner estimou a população em 6 mil pessoas, “provavelmente mais”. Em 1968, a expedição Calleri, à serviço da Fundação Nacional do Índio (Funai) contabilizou 3 mil índios. Quatro anos depois, uma pesquisa mais minuciosa da FUNAI confirmou o número. Entretanto, em 1982, quando o antropólogo e pesquisador da Universidade de Brasília (UnB), Stephen Beines, chegou a área para iniciar uma pesquisa, restavam apenas 332 waimiri-atroari.
Hoje, após anos de pesquisas, Egydio Schwade sabe que o território e o povo waimiri-atroari foram duramente afetados pela política desenvolvimentista da ditadura militar. Segundo ele, o Decreto Lei 68.907/71 reduziu as terras da etnia a um quinto do original, sem ao menos uma comunicação prévia com o povo que ali vivia. A parcela desmembrada foi destinada, primeiro, à construção da BR-174, que liga Manaus (AM) à Boa Vista (RR). E, depois, à instalação da Hidrelétrica de Balbina, que abasteceria a Zona Franca de Manaus, e à exploração de minério. Só para a construção da hidrelétrica, foram alagados mais de 30 mil hectares de área waimiri-atroari.
Sem um trabalho prévio de convencimento dos índios, os militares mandaram tratores e máquinas pesadas para a área. Conforme o indigenista, os velhos achavam que os civilizados colocariam toda a floresta de raízes para cima e, por isso, partiram para a resistência. Foi quando ocorreu o massacre da expedição liderada pelo Padre João Calleri, em que ele e outros dez “brancos” foram assassinados pelos índios. O episódio passou a ser amplamente utilizado pelos militares para atestar a “ferocidade” da etnia e justificar a matança. O Comando Militar da Amazônia instalou um quartel na região para controlar os movimentos dos “não civilizados”.
Índios guerrilheiros
O indigenista conta que, durante as aulas de alfabetização, eram comuns os desenhos de crianças que mostravam aviões sobrevoando as aldeias. Os relatos sobre as mortes que sucediam a esses rasantes também eram constantes. Registros históricos sobre a população waimiri-atroari comprovam a redução populacional assustadora. Em 1906, o pesquisador alemão Jorge Hübner estimou a população em 6 mil pessoas, “provavelmente mais”. Em 1968, a expedição Calleri, à serviço da Fundação Nacional do Índio (Funai) contabilizou 3 mil índios. Quatro anos depois, uma pesquisa mais minuciosa da FUNAI confirmou o número. Entretanto, em 1982, quando o antropólogo e pesquisador da Universidade de Brasília (UnB), Stephen Beines, chegou a área para iniciar uma pesquisa, restavam apenas 332 waimiri-atroari.
Hoje, após anos de pesquisas, Egydio Schwade sabe que o território e o povo waimiri-atroari foram duramente afetados pela política desenvolvimentista da ditadura militar. Segundo ele, o Decreto Lei 68.907/71 reduziu as terras da etnia a um quinto do original, sem ao menos uma comunicação prévia com o povo que ali vivia. A parcela desmembrada foi destinada, primeiro, à construção da BR-174, que liga Manaus (AM) à Boa Vista (RR). E, depois, à instalação da Hidrelétrica de Balbina, que abasteceria a Zona Franca de Manaus, e à exploração de minério. Só para a construção da hidrelétrica, foram alagados mais de 30 mil hectares de área waimiri-atroari.
Sem um trabalho prévio de convencimento dos índios, os militares mandaram tratores e máquinas pesadas para a área. Conforme o indigenista, os velhos achavam que os civilizados colocariam toda a floresta de raízes para cima e, por isso, partiram para a resistência. Foi quando ocorreu o massacre da expedição liderada pelo Padre João Calleri, em que ele e outros dez “brancos” foram assassinados pelos índios. O episódio passou a ser amplamente utilizado pelos militares para atestar a “ferocidade” da etnia e justificar a matança. O Comando Militar da Amazônia instalou um quartel na região para controlar os movimentos dos “não civilizados”.
Índios guerrilheiros
Os militares chegaram a difundir, via imprensa, que guerrilheiros infiltrados estavam incitando os índios a agirem contra o regime, situação jamais comprovada. As suspeitas, entretanto, justificaram a Operação Atroaris, uma ação anti-guerrilha que contou até com panfletagem sobre a área, pedindo a rendição dos supostos inimigos do regime. Também houve época em que os militares os classificaram como terroristas, espalhando novos boatos, também nunca atestados, de que instigadores estrangeiros viviam em seu meio.
O desdém com as vidas waimiri-atroari era tamanho que, em 1975, o comandante do 6º Batalhão de Engenharia e Construção (BEC) do Exército, coronel Arrufa, declarou ao jornal Estado de São Paulo: “A estrada é irreversível como é a integração da Amazônia no país. A estrada é importante e terá que ser construída custe o que custar. Não vamos mudar seu traçado, que seria oneroso para o Batalhão, apenas para pacificarmos os índios primeiro”.
Egydio conta que, após a conclusão da estrada, em 1977, a estratégia do governo se voltou para a construção da hidrelétrica e para a implantação dos projetos de mineração. Contando com o apoio de uma Funai completamente subserviente, passou a apresentar os waimiri-atroari como “agricultores pacíficos, dóceis e integrados”. “Agentes do governo perambulavam de mãos dadas com os índios pelas ruas de Manaus”, relato o indigenista. Segundo ele, para a implantação dos seus projetos na área, convinha ao governo que a Funai colaborasse para manter os remanescentes das vítimas isolados da opinião pública, de pesquisadores e do movimento popular indigenista.
As denúncias do massacre, entretanto, passaram a incomodar até mesmo o Banco Mundial, que financiava a construção de Balbina. A partir de 1986, o órgão condicionou à liberação de novos financiamentos a execução de um programa de assistência sanitária e educacional aos índios. Fico acertado que, durante 25 anos, o banco financiaria o Programa Waimiri-Atroari-PWA, controlado pela empresa Eletronorte. “Pela primeira vez na história da política indigenista brasileira a condução desta passa a uma empresa”, denunciou Egydio, destacando que a sua expulsão e dos demais pesquisadores que atuavam na área foram medidas decorrentes.
Comissão Parlamentar da Verdade
Em depoimento prestado nesta quarta (9) à Comissão Parlamentar da Verdade, instituída pela Câmara para apoiar os trabalhos da nacional, a repórter Elaize Farias, do jornal A Crítica, de Manaus, disse que desde a criação do programa comandado pela Eletronorte, os índios sobreviventes vivem isolados. “Eu já tentei visitar a área várias vezes, assim como outros repórteres, mas a Eletronorte nunca autoriza”. Segundo ela, a última matéria jornalística envolvendo os kiñas, elaborada por uma fonte não oficial, data de 1996, quando os índios interditaram uma estrada em protesto contra a invasão das suas terras. Depois disso, as duas únicas notícias foram pautadas pela própria assessoria de comunicação da Eletronorte. Em 2003, quando nasceu o indivíduo número mil, o programa levou vários jornalistas à aldeia para comemorar a recuperação populacional. No ano passado, com o nascimento do quingentéssimo, a empresa emitiu release e foto.
No seu depoimento, o professor da UnB, Stephen Beines, confirmou que, durante sua pesquisa na aldeia waimiri-atroari, que durou de 1982 a 1985, ouviu diversos relatos sobre as mortes em massa, precedidas por um pó branco que caía do céu e causava dores nos corpos dos indígenas. Também colecionou relatos sobre voos rasantes de aviões e helicópteros. Viu várias aldeias abandonadas, além de outras em que restaram apenas poucos sobreviventes. Mas ele acredita que o envenenamento não foi a única arma usada para o massacre. Em 1975, quando ainda não residia no Brasil, esteve na área por um único dia e presenciou situações preocupantes. Já na ida, o comandante do 6º BEC parou o jipe em que pegava carona para dizer que ele não poderia prosseguir, porque os militares estavam tendo problemas com os índios. Depois de intensa negociação, conseguiu visitar uma aldeia.
Soldados com quem tivera contato lhe disseram que o desmatamento necessário à construção da estrada já estava completo, mas ainda faltava a interligação com uma outra estrada. E que ações agressivas dos índios prejudicavam esta fase da obra. Meses atrás, uma equipe da Funai fora assassinada. “As obras foram suspensas e o Batalhão de Infantaria foi chamado. Durante três semanas, militares fortemente armados fizeram exercícios de campo para amedrontar os índios e permitir a conclusão da estrada”, conta ele.
Representando a Secretaria de Direitos Humanos (SDH) da Presidência, o coordenador do projeto Direito à Memória e à verdade, Gilney Viana, lembrou que o massacre dos waimiri-atroari foi um caso emblemático, mas não isolado. Segundo ele, o modelo desenvolvimentista da ditadura militar foi responsável também pelo extermínio de outros indígenas. “A abertura da Br-164, que liga Cuiabá (MT) à Santarém (PA), na década de 1970, impactou diversas etnias, como os panarás, que também foram desterritorializados e tiveram sua população reduzida, principalmente devido ao contato com as doenças dos brancos”.
Para Viana, o mais grave é constatar que os índios, assim como os camponeses, foram excluídos não só da história oficial, mas também da memória sobre a ditadura militar organizada pela esquerda. “A ditadura militar ocasionou muito mais vítimas do que nossa historigrafia já levantou, seja ela qual for. O grau de violência é muito maior e a diversidade desta violência também. Os 70 mil pedidos de anistia não espelham esta situação e, por isso, é tão importante esta oportunidade de recontarmos a história, mesmo sem a pretensão de oferecer uma verdade absoluta, propiciada pela Comissão Nacional da Verdade”, destacou.
Os depoimentos foram pesados e chegaram a chocar os presentes à audiência. A coordenadora da Comissão Parlamentar da Verdade, deputada Luíza Erundina (PSB-SP), disse que irá propor diligências na área e tentar um contato com os waimiri-atroari, para ouvir os relatos diretamente dos seus principais protagonistas. Ela criticou duramente a ausência dos representantes da Eletronorte e da Funai, que também foram convidados. “Eles devem explicações ao povo brasileiro”, justificou.
Fotos: Beto Oliveira/Agência Câmara
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