sábado, 2 de junho de 2012

A AMPLA CIDADE



Rui Peralta

A esperança mora ao lado

O mundo ocidental mudou. Aparentemente o mundo ocidental actual, apesar de todas as turbulências e de tudo aquilo que vai mal, é mais civilizado. Vejamos, por exemplo, os direitos das mulheres. Elas eram consideradas propriedade. Dos pais e dos maridos. Não votavam (um dos argumentos contrários ao voto feminino era bastante redentor: injusto elas votarem, porque assim os homens casados duplicavam o seu voto), não se manifestavam, não frequentavam a escola durante muito tempo, os trabalhos eram monótonos, não assumiam cargos de liderança e por ai fora. Tudo isso mudou. Para melhor. Claro que os paradigmas sociais das mulheres, hoje são outros, que o movimento feminista ou não feminista, mas do género, ainda tem muito para fazer, há novos problemas gerados pela dinâmica da emancipação feminina, nas novas funções a desempenhar, no papel a assumir nas famílias, no trabalho, no desemprego, no poder político, mas a mulher já não é propriedade. No mundo ocidental (é dele que estou a falar).

Outro dos aspectos em que o mundo ocidental mudou, por exemplo, foi os direitos dos homossexuais. Num passado recente havia leis contra a “sodomia” e a homossexualidade era considerada uma anomalia grave, socialmente condenada, perseguida. Na Inglaterra, nos anos 50 do seculo passado (seculo XX) um dos grandes matemáticos do século, Alan Turing, um herói da segunda guerra mundial que decifrou os códigos alemães, era homossexual. Em 1950 isso ia contra a lei inglesa e Alan Turing, foi submetido a um tratamento intenso, com o objectivo de curá-lo dessa “anomalia”. Alan Turing acabou por suicidar-se em 1954. Hoje isso não aconteceria, na Inglaterra, ou em qualquer ponto do mundo ocidental, por que Ocidente está mais civilizado.

É evidente que há coisas que acontecem no mundo ocidental que não são propriamente coisas de um mundo civilizado. Por exemplo a história do primeiro prisioneiro detido em Guantánamo que foi a julgamento (já na presidência de Obama). Tinha sido capturado com 15 anos de idade. Pertencia a uma milícia de aldeia, no Afeganistão, sendo considerado terrorista. Foi para o campo de Bagram e depois para Guantánamo, num total de oito anos nesses centros de tortura. No mandato de Obama lá foi a julgamento, sendo-lhe proposto pelos juízes do tribunal militar duas soluções: Declarava-se inocente e ficava em Guantánamo o resto da vida, por razões de segurança (não ficou explicita se segurança do próprio ou dos USA) ou declarava-se culpado e apanhava uma pena de 8 anos de prisão. Óbvio que preferiu declarar-se culpado e cumprir a pena.

Esta não é propriamente a justiça mais indicada para um mundo ocidental civilizado. Tal como não é civilizado matar cidadãos estrangeiros em solo de um terceiro país, ou matar cidadãos nacionais em solo próprio ou solo estrangeiro. São actos bárbaros, condenados pela civilizadas leis ocidentais, mas que os estados do mundo ocidental fazem, de vez em quando, às vezes de forma mais assídua, como se fossem rituais de barbarismo para quebrar a monotonia do acto civilizado. Mas tão grave como o acto em si é a presunção do acto. Assassinaram-se e aprisionaram-se suspeitos. Nenhum tribunal os condenou. Faz por ai uns 800 anos, foi redigido pelos bárbaros da época, um documento chamado Carta Magna, documento base do direito anglo-saxónico, um dos pilares do mundo ocidental, onde foi estipulado que não se violariam os direitos de ninguém sem primeiro existir um processo legal e um julgamento, onde seria decidido se o suspeito era culpado, ou não.

Esta questão, de comportamentos menos civilizados no Ocidente da civilização faz-me recordar a minha promessa de vos contar o relato do Chris Two e como a parte do relato de hoje tem a ver com a passagem do Chris nos Infernos do Ocidente, aqui vai:

No dia seguinte entraram nos Infernos Centrais do Ocidente, começando pelos Infernos Pagãos. Chris e O Anjo caminharam para Norte, entraram num túnel que os transportou para o Inferno Nórdico. Este é um Inferno anterior á Terra, sendo o único Inferno Celestial, situado numa ilha, algures no espaço sideral. É banhado por 5 rios: Angustia, Perdição, Abismo, Tempestade e Bramido. Um enorme edifício, cujas portas são formadas por cadáveres de serpentes, está instalado nas margens destes rios. As portas deste enorme edifício abrem-se para um rio de veneno que corre no interior do edifício e onde as almas condenadas mergulham.

No 1º andar habita a Morte e os seus secretários, a Fome, a Miséria e a Dor. Das janelas do escritório da Morte podem-se ver a ribeira dos cadáveres, a floresta de ferro, por onde vagueiam as almas dos gigantes e os 3 mares onde flutuam as almas dos guerreiros que fugiram do combate, mastigadas por um dragão negro, que depois as vomita, obrigando-as a renascer, para assim continuarem a flutuar. Os outros andares do edifício são habitados, por piso, pelas almas dos aristocratas, dos chefes sindicais, dos sociais-democratas, dos conservadores, dos que se suicidam e das mulheres de cabelo escuro. As restantes almas condenadas por um guardião são controladas, nas imensas planícies geladas. Zela o guardião pelo cumprimento das suas penas. Não é um inferno permanente para os que vivem no edifício, pois podem voltar ao ciclo da vida, quando cumprem as penas.

Chris e o Anjo pernoitaram duas noites por ali e voltaram ao túnel, por onde saíram, caminhando para Sul. Passaram por um pequeno e estranho Inferno habitado por apenas três almas: dois guerreiros e uma Princesa, todos Celtas. Os dois guerreiros amam a Princesa e foram condenados a combaterem-se até ao fim dos tempos, enquanto a alma da Princesa aguarda eternamente pelo vencedor. Chris Two falou ao Anjo: “Será que eles a amam ou será que eles se amam? Será que o objeto do amor não é a princesa mas o combate? De qualquer das formas, até o Amor pode transformar-se num Inferno.”

Chegaram a um imenso oceano de águas escuras e agitadas e atravessaram-no numa imensa barca. No final da viagem de várias horas, desembarcaram no Inferno do Sul América. Este não é um Inferno muito duro, pois os sul-americanos já sofrem de mais na Terra. As almas dos ricos desta região, não vêm para aqui, vão para o Inferno Cristão.

Caminhando em sentido ascendente, entraram nos Infernos Confederados, para os indígenas da América Central, Caribe, Mexicanos, Norte-Americanos e Canadianos. Estes Infernos consistem num grande abismo, onde as almas ardem eternamente. Podem voltar, mas como espíritos, para comunicarem com os vivos e logo tornarem ao seu Inferno.

O Anjo pegou em Chris e voaram sobre o imenso oceano, aterrando numa zona do Inferno, chamada Caverna do Tártaro, que é um local de desespero. As almas para aí levadas são as almas condenadas dos armadores gregos, dos grandes investidores e dos CEO das grandes petrolíferas. São diariamente torturadas, por toda a eternidade, sujeitas a temíveis tormentos: os abutres devoram-lhes as entranhas, que voltam a crescer para serem devoradas no dia seguinte e são marcados pelo fogo. Uns morrem diariamente de fome, outros morrem de sede, embora no dia seguinte as almas passem pelo mesmo martírio da fome e da sede. Outros carregam água de um rio para outro e outros carregam, subindo altos montes, enormes rochedos, que logo voltam a cair, para tornarem a ser carregados. Chris e o Anjo permaneceram dois dias nesse Inferno, aguardando autorização de saída, partindo, depois, para um conjunto de inúmeras ilhas, criadas pela confluência de 4 rios.

Numa das ilhas ficavam as almas dos que não foram enterrados, vagueando durante 5 anos, até lhes darem um destino. Noutra das ilhas ficavam as almas dos que morreram em dor, doença, remorsos, ciúmes, pobreza e fome. Numa outra, a mais pequena delas, ficavam as almas das crianças, chorando pelas mães, num abismo profundo. Havia uma ilha para as almas dos que morreram por amor, outra para os que se suicidaram, outra para os que morreram em combate…

As almas condenadas que aqui cumprem as suas penas já não saem mais e perdem a memória, lembrando-se apenas dos males porque passaram.

Continuaram a sua Peregrinação e chegaram ao Inferno dos Hebreus, onde o fogo é o elemento central. O Senhor dos Exércitos derrama a Sua fúria sobre os pecadores por toda a eternidade. As almas condenadas são consumidas pelo fogo e não há retorno. Para este Inferno são encaminhadas as almas dos judeus não sionistas. Chris comentou: “Curioso, o Paraíso Hebreu é um Paraíso Secreto, que não é permitido visitar, mas deixaram-nos ver o Inferno…” O Anjo sorriu e respondeu-lhe: “Não há infernos secretos. O Inferno, ao contrário do Paraíso, não é uma Utopia. Basta não cumprir com as regras, quaisquer que elas sejam, para seres condenado. Sabes Chris, os infernos são demasiado óbvios para que possam ser escondidos.”

Não há infernos secretos…Basta não cumprir com as regras…a peregrinação do Chris Two continua no próximo Ampla Cidade, mas queria reter estes dois pormenores, essenciais para o mundo Ocidental: os segredos e o cumprimento das regras. Temos um exemplo recente (aliás o difícil não é encontrar exemplos, o difícil é escolhê-los): o WikiLeaks. Aquilo que foi publicado pela WikiLeaks não tem nada de secreto. Deveria ser considerado positivo e uma manifestação de transparência por detrás dos estados eleitos pelo Povo. São fontes que informam as pessoas sobre o que andam a fazer aqueles que elas elegeram. Não tem nada de extraordinário, nem era nada que não se soubesse, que a administração Obama tinha apoiado o golpe de estado nas Honduras, por exemplo. Já toda a gente o sabia, pois a própria embaixada norte-americana enviou um informe detalhado, elaborado logo no início do golpe, que considerava a atitude golpista um acto inconstitucional e que afirmava: “Se é inconstitucional, é ilegal”. Logo, quando Obama e Hillary Clinton deram o agrément, sabiam muito bem o que estavam a fazer.

Tal como não tem nada de extraordinário saber-se que a embaixadora dos USA no Paquistão escreveu num memorandum para o Departamento de Estado que a estratégia de assassinatos e de pressões sobre o Paquistão constituem um perigo real, pois comportam a radicalização do Paquistão, sendo este estado muito mais perigoso para os USA do que o Afeganistão, pois não só possui instalações e armas nucleares, como tem um exército forte e bem organizado. Além do mais é um país aliado dos USA e as acções militares norte-americanas não respeitam a soberania nacional Paquistanesa, criando um mal-estar profundo por parte do Paquistão. Isto que a embaixadora informou, não tem nada de extraordinário. Para qualquer cidadão essa é uma manifestação de bom senso.

Mas o poder político e os clãs financeiros já não querem saber desse velho estereótipo burguês. O bom senso é coisa da cultura ocidental até ao seculo passado e foi um conceito introduzido pela burguesia (os habitantes dos burgos). O problema é que na ausência do bom senso só resta a demonstração de força. Basta olharmos para dois comportamentos típicos deste sintoma na política de segurança dos USA: Logo após o 11 de Setembro os clãs republicanos norte-americanos desenvolveram as acções de sequestro e os campos de tortura (tudo fora do território norte-americano). Hoje os clãs democratas norte-americanos aboliram ambas as prácticas, substituindo-as pelo homicídio directo. Na ausência do bom senso burguês o Estado de Direito legitima o sequestro e a tortura. Como tais medidas revelaram-se insuficientes legitimaram o homicídio (aliás esta deve ter sido uma das poucas promessas que Obama cumpriu: acabar com os centros de tortura).

Mas sem duvida que o mundo está a mudar. E não só o mundo ocidental. O mundo todo. Mesmo ao lado do centro do mundo ocidental a América Latina sofreu transformações enormes, libertando-se do domínio do mundo ocidental, particularmente do imperialismo yankee (sei qua as novas terminologias baseiam-se em critérios sociológicos, jurídicos e filosóficos - poderiam resumir tudo na antropologia, mas se calhar por causa de Bolonha, agilizaram a formação – no entanto continuo a preferir a terminologia politica do discurso de combate, onde os bois são chamados pelos seus nomes).

Há 53 anos Cuba iniciou uma epopeia. Hoje toda o lado Sul do continente americano trata dos seus problemas internos e isola os USA e o Canadá, como acontece com a comunidade criada pelos estados da América Latina e do Caribe, a CELAC, que exclui formalmente os dois gigantes do norte do continente e que apresenta-se como uma possível substituta da velha OEA, onde foi visível na ultima cimeira de Cartagena a vontade dos estados do continente em discutir as suas agendas e não a agenda do grande estado do norte. São sinais da mudança.

É que os paraísos são fáceis de esconder, são ilusões e as ilusões escondem-se em qualquer recanto. Mas os infernos… cheiram mal.

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