Pedro Bacelar de Vasconcelos – Jornal de Notícias, opinião
Algo de errado se passa com o Fundo Monetário Internacional. Christine Lagarde, sem perder a habitual aparência de "travesti chique" que lhe franqueou as portas do rígido universo masculino da alta finança internacional, desatou a fazer comparações absurdas entre a situação das crianças, numa remota aldeia da Nigéria, e a falência dos serviços e estruturas sociais que estão a destruir a democracia grega.
Queixaram-se os gregos ofendidos, com muita razão, e com muita razão se podiam ter queixado também os nigerianos e os cidadãos de qualquer continente como fez Manuel António Pina, nas páginas deste jornal: "a diretora-geral não podia ser mais clara (nem mais cínica)". O que surpreende é que depois do afastamento do seu antecessor por alegada incontinência sexual, Christine Lagarde não tenha ainda sido demitida por esta flagrante exibição de incontinência verbal. De facto, enquanto as suspeitas de assédio que vitimaram Dominique Strauss-Kahn não indiciavam a menor relação com o conteúdo das funções que então desempenhava no FMI, o mesmo já não se passa com as declarações de Lagarde, dirigidas contra um dos estados soberanos que integram a instituição que ela própria dirige, e no contexto de um programa de reequilíbrio financeiro em que são partes.
Dos funcionários do FMI não se espera que tenham "estados de alma", que façam confissões íntimas ou revelem afinidades caprichosas, mas apenas que mostrem respeito pelos povos e cumpram a sua missão institucional com seriedade e competência, seja na luta contra a pobreza ou na assistência financeira, na África, na Europa ou na Oceânia. Despudoradamente, Lagarde exibe todo o seu desprezo pela grave situação social e económica vivida pelos gregos e afirma com arrogância a sua indisponibilidade para ponderar as consequências reais das medidas de austeridade que obsessivamente promove e recomenda. Os gregos que cuidem de si, proclama ela acintosamente, que os mais ricos tratem dos mais pobres e que todos paguem os seus impostos. Decididamente, o respeito pelas pessoas e a solidariedade entre os povos não fazem parte do vocabulário desta burocrata desbocada e inimputável. O "desmentido", porém, não se fez tardar, sábado, 26 de maio, imagine-se: numa página do facebook! E Lagarde apenas confirmou que não é capaz de distinguir entre as suas preferências subjetivas e os deveres inerentes ao cargo que lhe atribuíram. Embora, eventualmente, não o mereçam, diz agora que afinal até simpatiza com os gregos e que, por isso, é que o FMI os está a ajudar: "(...) I am very sympathetic to the Greek people and the challenges they are facing. That's why the IMF is supporting Greece (...).
O que poderá justificar no mundo atual, marcado pela irresistível ascensão económica dos países emergentes - os chamados "BRIC" (Brasil, Rússia, Índia e China) - que a nomeação para o cargo de diretor do FMI continue a ser um "privilégio" exclusivo da França e dos Estados Unidos da América, exercido alternadamente por cada um deles? Esperando que aquela incontinência epidémica não tenha contagiado François Hollande, que bem lhe ficaria denunciar o comportamento impróprio e irresponsável da sua compatriota, e aproveitar esta oportunidade para a França renunciar a prerrogativas obsoletas, herança da Segunda Guerra Mundial, e propor o avanço da sempre adiada reforma das Nações Unidas! Se não queremos que a fragilização dos estados conduza ao irreversível declínio das democracias constitucionais, então é muito urgente construir uma nova ordem internacional que regule e imponha procedimentos transparentes e controláveis a um poder tentacular, anónimo e informal que submete à mais selvagem especulação financeira a distribuição da riqueza produzida e o bem-estar das populações. Escondida na opacidade das grandes organizações internacionais e defendida por métodos de cooptação isentos de escrutínio democrático, esta tecnocracia leviana, arrogante e incompetente - de que Christine Lagarde é clamoroso exemplo - constitui uma séria ameaça contra a paz, o desenvolvimento e a solidariedade entre os povos.
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