sexta-feira, 22 de junho de 2012

O BOSQUE EM FLOR



Rui Peralta

O novo capítulo do Livro dos Mortos: Sacerdotes, faraós e militares

Egipto: O parlamento anticonstitucional e as eleições presidenciais

O Supremo Tribunal Constitucional (STC) egípcio declarou na passada semana que o parlamento é anticonstitucional, abrindo caminho a crise institucional. O STC considera que as últimas eleições legislativas não foram constitucionais e que toda a composição do parlamento é ilegítima desde a sua eleição. Faruq Sultan, o presidente do STC, afirma que as autoridades têm de respeitar a constituição pelo que esta decisão tem de ser cumprida e eleger-se novo parlamento. Enquanto isso Saad Al Katani, o porta-voz do braço político da Irmandade Muçulmana (IM), que detém a maioria parlamentar, advertiu que nenhuma autoridade tem poder para dissolver a legislatura.

Tudo isto passou-se pouco dias antes da segunda volta das eleições presidências, realizadas no passado fim-de-semana, que opuseram Ahmed Safiq, ex-primeiro ministro de Mubarak a Mohamed Mursi o candidato da IM. As eleições decorreram num ambiente de desconfiança e antes da Comissão Eleitoral publicar os resultados, Musri, o candidato da IM, já proclamou a vitória. Por sua vez a Junta Miliar já fez saber que não abandonará o controlo do processo em curso, servindo-se de mecanismos constitucionais que lhe permitem exercer intervenção sobre a vida politica.

Diversos activistas e organizações apelaram ao boicote eleitoral e contestam o que consideram ser um abuso do poder militar e um golpe de estado que permite ao exército manter o poder. As Forças Armadas controlam, na práctica, o país desde 1952. As altas hierarquias militares gozam de privilégios fiscais, gerem as empresas públicas e controlam cerca de 30% da indústria egípcia. Desde os acordos de Camp David, em 1979, recebem 1,3 milhões de USD por ano de um acordo de cooperação militar com os USA, que consideram o Egipto uma peça central da política externa norte-americana no Médio Oriente e Norte de África.

Nas últimas manifestações têm sido exibidos cartazes que acusam Washington e a OTAN de favorecerem os militares egípcios para melhor defenderem os seus interesses. Uma das mensagens que mais passou nos telemóveis e nas redes ativistas na Internet, na última semana proclamava: “A revolução exigia pão, liberdade e justiça social. Deram-nos exército, policia e policia militar.”

Logo após o triunfo da IM não faltaram as expressões de preocupação nos media do ocidente. Alguns artigos de opinião qualificaram a vitoria eleitoral da IM como vitória do terrorismo e é curioso verificar como a IM apresenta um discurso moderado, para consumo do Ocidente. Seja como for, para largas camadas da população egípcia o ocidente apoiava Mubarak e a reacção negativa da diplomacia ocidental á vitoria eleitoral islâmica é vista como uma ingerência nos assuntos internos. É bom não esquecer o historial de ingerências, invasões e destruições a que o Egipto foi sujeito através dos séculos. As potencias ocidentais (principalmente a França e a Inglaterra) saquearam o Egipto. Algum desse saque pode ser visto nos museus do ocidente, sob a capa de “doações generosas”, as doações a que os países colonizados são obrigados às potências que os subjugam.

NAZRA

Paralelamente aos jogos de poder entre sacerdotes, faraós e militares, ao veneno neocolonial e á ingerência imperialista, as mulheres avançam na sua emancipação. Neste sentido há que salientar o Nazra, o Instituto de Estudos Feministas, um centro cujo objectivo é o aumento do papel participativo da mulher nos processos políticos, económicos, sociais e culturais da sociedade egípcia. O Nazra trabalha em diferentes âmbitos. Tem uma academia para apoio e formação a mulheres politicamente activas, transversal a todas as organizações e partidos políticos. Apoiam activistas dos direitos das mulheres e dos direitos humanos em geral. Trabalham com jovens e artistas, grupos de teatro, musica e grafitis. Realizam palestras e debates. Sentem na pele o perigo da islamização da sociedade egípcia, mas temem também a militarização, que consideram ser, no momento actual em que a dinâmica das forças sociais obriga a IM e os fundamentalistas a refrearem os seus ímpetos, a principal ameaça á emancipação da mulher egípcia.

Os resultados eleitorais

Apesar de os resultados oficiais tardarem a sair, as contagens finais apontam a vitória a Mursi, com 52% contra 48% de Shafiq. A Comissão Eleitoral averigua ainda algumas irregularidades, pelo que não decidiu oficializar os resultados até á conclusão dos processos em curso. No entanto o vencedor é a abstenção e o voto nulo, pois muitos dos que participaram na queda de Mubarak (cuja morte foi anunciada, esta semana, mas parece que ressuscitou, numa confusa manobra dos media) não o fizeram para entregar o país á IM, ou para o reconduzir a uma versão soft do anterior regime, pelo que não se identificam (e não confiam) nem com Musri nem com Shafiq e não praticaram o voto estratégico, preferindo a abstenção a participação com vito nulo de protesto.

Outro factor que caracterizaram estes resultados prendem-se com o papel jogada pelos militares. O Conselho Supremo das Forças Armadas (CSFA) apoderou-se do país após a queda do regime. Algumas forças acusam-nos de manipulação do processo eleitoral e por estarem detrás das decisões do Supremo Tribunal Constitucional, para além de considerarem que os militares fomentaram uma campanha contra a IM, ameaçando com um advento de um estado teocrático. Seja como for os militares são a terceira força, com a vantagem de não precisarem de concorrer às eleições e de terem um candidato do regime de Mubarak que está refém da sua vontade. No fundo são eles os principais beneficiados com queda de Mubarak. Controlam o aparelho de estado e fizeram refém largos sectores da média burguesia e da burguesia nacional que se identificavam com o anterior regime.

Na primeira volta das eleições presidenciais os candidatos do sector mais popular da revolução (camadas urbanas pequeno-burguesas, estudantes e trabalhadores) receberam quase 15 milhões de votos, repartidos por diversos candidatos, que representavam mais ou mais aquilo, mas que foram incapazes de criar uma frente única que varresse os reacionários islâmicos, os militares e as poeiras de Mubarak. Destes 15 milhões de votos apenas uma pequena parte foram cedidas a Musri, sendo que os restantes candidatos eliminados apelaram ao voto nulo e á abstenção na segunda volta.

Outro facto é que o CSFA acabou, na práctica, por dar um golpe de estado invisível, doce e suave. Claro que a IM, ocupada com as eleições presidenciais e preocupada em não atiçar os USA e a OTAN (que em ultimo caso acabariam por apoiar os militares, como aconteceu na Argélia, num passado recente) ainda não demonstrou a sua capacidade de mobilização contra os militares. Mas a questão é saber se de facto a IM está em condições de o fazer. É uma força que, apesar do forte apoio popular – principalmente nos meios rurais – representa os interesses da burguesia agrária e dos latifundiários e senhores da terra que, desde Nasser, combatem a ténue e destruturada reforma agrária que aos solavancos foi iniciada mas nunca concluída. Por outro lado a IM conta também com o apoio de largas camadas da burguesia comercial e da média burguesia (da parte da média que não gozou de benesses do anterior regime e que é média porque foi desapropriada) para além dos sectores da pequena burguesia que se encontram em risco de proletarização. No meio disto tudo a IM tenta demonstrar aos USA que são uma força moderada e capaz de manter o Egipto no campo da cooperação com os norte-americanos. Não gostam de reforma agraria, não gostam de nacionalizações, concordam com a liberalização da economia e o facto de não pretender um choque directo com os militares, pode-lhe ser útil.

O golpe suave

O golpe suave dos militares foi realizado em 3 fases. Teve início em 14 de Junho, quando o exército, por ordem do CSFA, tomou o edifício do Parlamento, antecipando-se á decisão do Tribunal Supremo. Dias depois emitiu o seu próprio decreto dissolvendo o Parlamento e reclamou os poderes legislativos. Terminara a primeira fase e passou de imediato á segunda. O Ministro da Justiça restaurou as leis de emergência, dando plenos poderes às forças armadas para deter qualquer cidadão que o exército considerasse uma ameaça, sendo o julgamento destes detidos efectuado em tribunais militares. Estava feito dois terços do caminho. A última fase foi iniciada a 17 de Junho, duas horas depois do encerramento das urnas, quando o CSFA emitiu uma declaração constitucional revista, que transfere grande parte dos poderes presidenciais para a presidência do CSFA. O presidente da república deixa de ser comandante em chefe (passando esse papel a ser assumido pelo Almirante Hussein Tantawi), deixa de poder promover ou despromover oficiais, de declarar o estado de guerra, fica impedido de interferir nos assuntos das forças armadas ou qualquer utilização das mesmas. Ou seja o exército deixou de se submeter ao poder civil, representado pelo PR, eleito pelo povo. É um golpe profundo na soberania popular.

Óbvio que esta usurpação do poder por parte das forças armadas (que já dominavam a situação desde a queda de Mubarak) foi condenada por toda a gente, mas pouco mais do que isso, a condenação pelas palavras e pelas rituais manifestações que já fazem parte do quotidiano do Cairo (possivelmente serão a próxima atracçäo turística após a normalização). Seja como for os próximos tempos serão marcados por uma cerrada luta de cotovelos entre por um lado os sacerdotes e por outro os militares (que já aprisionaram o faraó aos seus objectivos). No meio as camadas populares, incapazes, por enquanto, de dar uma resposta eficaz.

Por cima o imperialismo, manobrando as suas marionetes, joga o seu jogo preferido.

Fontes
Esam Al-Amin; The future direction of egypts revolution; http://www.counterpunch.org
Olga Rodríguez; Se oficializa el golpe de Estado en Egipto; http://www.eldiario.es
Jordi Pérez; Un presidente islamista bajo vigilancia se declara vencedor en Egipto; http://www.eldiario.es
Jorge Majfud; Las elecciones en Barbaria; http://www.rebelion.org

Sem comentários:

Mais lidas da semana