Rui Peralta
Entre 1975 e 1990 o capitalismo monopolista - que caracterizou a sociedade europeia pós II Guerra Mundial - criador do Welfare State e outras ilusões económicas keynesianas, sofreu uma transformação qualitativa, passando a caracterizar-se por um grau desmedido de centralização do controlo do capital por parte dos monopólios, sem comparação com a fase anterior. Dai em diante os monopólios – Samir Amin qualifica esta fase pela “etapa dos monopólios generalizados”- controlam todas as actividades económicas (conseguida pela diversidade dos investimentos) extraindo rendimentos sempre crescentes. Nesta etapa a democracia – regime político do capitalismo onde este encontra a vitalidade institucional necessária á sua expansão económica - vira uma página, rompendo o contracto social e os compromissos assumidos durante a vigência do liberalismo democrático (até á I Guerra Mundial, e mitigado durante o período entre guerras) e da social-democracia (no período pós II Guerra).
Para estabelecerem o seu domínio os “monopólios generalizados” necessitaram destruir as estruturas decadentes do estado-nação. A lógica deste sistema de domínio implicou, assim, uma profunda alteração dos mapas europeus. O decadente sistema do “socialismo real” deixou de ter utilidade na lógica da competitividade entre “sistemas” (o capitalismo de estado ocidental, de mercado aberto e apostado na gestão social-democrática e no jogo politico da democracia liberal e o capitalismo de estado do Leste, “o socialismo real”, uma variação de um “capitalismo sem capitalistas” apostado na centralização burocrática e na criação a longo-prazo de uma mão de obra de baixo custo) e desapareceu ou “implodiu” segundo a expressão de alguns, sendo substituído por um vasto campo para a rapina. Por sua vez os avanços que a ideia de um vasto mercado europeu tinha sofrido, acabaram por inserir-se na logica desta nova transmutação monopolista.
A UE não é uma criação dos monopólios conforme alguns defendem – saudosos do tempo em que o capitalismo era mais fácil de decifrar e da comodidade que representava o Estado Social como imanação do estado-nação – mas só foi possível porque permitiu a transformação qualitativa que o capitalismo necessitava, para conseguir inserir ao nível da produção o imenso manancial oferecido pelas novas tecnologias. É de vistas curtas ver o projecto europeu como emanação do imperialismo e outras baboseiras senis que certa esquerda reacionária, completamente perdida no labirinto do capital, defende. O projecto europeu não é um projecto burguês, antes pelo contrário, é um projecto que tem origens no movimento operário europeu, no tempo em que o proletariado comandava a globalização e no tempo em que o vírus identitário não tinha tomado conta das mentes proletárias. Nesses tempos a nação era o e estado burguês e os proletários não tinham nação, pois o seu estado era a classe. São essas as origens da ideia europeia, que aos poucos foi refinada através do federalismo anarquista (Proudhon e Bakunine), das previsões sobre a sua inevitabilidade por Marx, até á fase revolucionária da social-democracia, acabando na gestão social-democrata do capitalismo, mas permanecendo na premissa dos Estados Unidos Socialistas da Europa até á tese reformista da Europa Social. Mas foi a partir do momento em que o capitalismo europeu, ou melhor, os capitalismos europeus, necessitaram de ultrapassar a fronteira imposta pelo estado-nação, a ideia europeia tornou-se um projecto viável, porque necessário á transformação e afirmação da primeira identidade europeia: o capitalismo europeu.
Afirmar que não existe legitimidade política supranacional na Europa porque não há “povo europeu” é um anátema histórico, que não faz qualquer sentido. Não existia um “povo soviético” mas existia um proletariado soviético e povos da URSS. São realidades pluridimensionais e olhar para elas com umas lentes unidimensionais provoca a miopia que caracteriza os defensores dessas “verdades progressistas”. Curiosamente estas teses cruzam-se com a forma como a UE encontra-se estruturada, prevalecendo um empecilho ao projecto europeu: o papel dos Estados, o ultimo reduto dos monopólios generalizados (necessitam do Estado-mercado),da esquerda senil e da embriaguez keynesiana. Cruzam-se não apenas no plano teórico (a senilidade e a ilusão de um lado, o projecto definido do outro), mas também nas intenções. Nenhuma destas forças pretende ver uma Europa estruturada em torno do Parlamento Europeu. E assim os monopólios fazem ouvidos de mercador ao Parlamento Europeu e os senis e escleróticos “esquerdianos” (os filisteus para usar uma expressão frequente em Lenine para caracterizar os escleróticos da sua época) consideram o Parlamento Europeu uma palhaçada.
E embora não seja este o cerne da questão, é este um elemento que separa o trigo do joio, ou seja, não é por acaso que na arquitectura institucional europeia o Parlamento Europeu carece da necessária legitimidade que transcenda os estados nacionais (e por inerência os parlamentos nacionais). A Europa para o capitalismo é um grande mercado. Mas existem outros amplos mercados, tão ou mais apetecíveis que o mercado europeu. O controlo monopolista só pode ser efectuado através do estado, ou melhor, do estado mínimo neoliberal (mínimo no que respeita ás politicas sociais, máximo nas politicas de defesa e segurança) e não num sistema político federal, assente numa estrutura parlamentar supranacional, legitimada pela soberanias populares. A soberania nacional e a territorialidade são mitos fundacionais do capitalismo e nem mesmo a sua necessidade de expansão global e a sua identificação globalizante, ultrapassam esse etnema.
Uma outra questão subjacente á construção europeia e ao papel dos monopólios generalizadores, é o euro. O euro é uma moeda administrada pelo Banco Central Europeu, tal como o dólar é administrado pelo Federal Bank. Na estrutura do Banco Central Europeu estão os Bancos Centrais dos países que formam a zona euro, que não são todos os países da UE. Os nossos queridos amigos da esquerda senil, vêm no euro uma criação dos monopólios generalizadores. “Não há moeda sem Estado – bradam aos 7 céus – e não há nem haverá Estado Europeu, logo o euro é uma moeda administrada unilateralmente pelos monopólios”. Bom, não vou pegar nesse atentado á inteligência que é a afirmação de que não há moeda sem estado (então o que é que acontecia na época de ouro do liberalismo de finais do seculo XIX e princípios do seculo XX com os bancos privados emissores, para já não falar dos períodos históricos anteriores ou da emissão de moeda por parte dos banqueiros malaios, chineses e indianos nos seculos XVI?), até porque não é um assunto relevante para a matéria em questão, mas vou pegar na questão da moeda administrada pelos monopólios. Meus caros: os monopólios não administram directamente e unilateralmente moedas, partilham, quanto muito, o valor da moeda, o que é outra coisa substancialmente diferente. Os monopólios podem exercer influência sobre uma moeda pelos movimentos de venda ou de compra da mesma, mas não é do interesse dos monopólios o controlo directo de uma moeda em particular. Eles necessitam do mercado das moedas, como uma forma de aplicação das mais-valias obtidas pela produção (enormes actualmente, devidas ao aumento exponencial da produtividade, causa primeira da inserção das novas tecnologias na produção).
A lógica capitalista na UE obedece ao padrão normal de globalização capitalista. Um centro dominante e periferias dominadas. A UE não alterou esse desenho. Essa logica foi transposta para o interior da UE, mas ela é anterior á sua formação e sem integração europeia ela continuaria a ser a mesma. As diferenças de desenvolvimento permitem ao capital dominante dos centros europeus sacar benefícios da periferia europeia. Mas isso tem a ver com o modelo antifederalista europeu que permite manter essa relação de forças e esse posicionamento dos mercados europeus. Não é uma consequência da UE, ou do Euro ou da zona euro. É evidente que esta arquitectura não permite que a Grécia resolva os seus problemas, não complete o seu ciclo de modernização, mas que o seu papel seja reduzido á dimensão das periferias balcânicas, como a Bulgária ou a Albânia. E este é também o problema de Portugal, da Irlanda, de Malta e do Chipre. A logica capitalista mantem-se inalterável na UE e esta não foi construída com vista a alterar essa lógica. Não vale a pena chorar lagrimas de pedra-pomes quando o nível de vida dos trabalhadores da Alemanha, o principal exportador europeu, é 30% inferior ao dos trabalhadores franceses. A UE é um modelo capitalista e a crise sistémica global agrava o seu relacionamento interno, mas que ninguém duvide que não é o facto de tirar a uma população o euro, retira-la da UE, que vai resolver o problema desse país, ou que vai acabara com a “exploração capitalista”. Um pais que hoje abandone o euro, saia da UE, vai cair na expolição do capitalismo brics, sem ter as vantagens de inserir um espaço amplo de desenvolvimento.
É de um reacionarismo extremo e de uma completa falta de visão estratégica revolucionaria, para além de demonstrar a mais absoluta ignorância sobre o funcionamento do capitalismo no seculo XXI, apresentar a ideia nacional como a grande perspectiva da luta anticapitalista, ou o retorno do Estado Social e do retorno das políticas de pleno emprego (que nunca existiram na europa keynesiana, pois era necessário manter as reservas de mão-de-obra para controlar o valor da mesma). São necessárias políticas alternativas e inovadoras. Soluções. Leituras realistas e não visões ideológicas e redentoras. Novas formas de propriedade pública para criar condições de socialização, alternativas comunitárias, nacionalizações de sectores estratégicos. Politicas agrárias que libertem os agricultores europeus e terminem com os monopólios situados no início e no fim da cadeia, os bancos e as grandes cadeias de distribuição. O sistema de preços dos produtos agrícolas é irrealista e profundamente injusto, os camponeses e os pequenos agricultores vivem dos subsídios e das subvenções. A nacionalização da banca e novos canais de distribuição dos produtos agrícolas, de envolvência comunitária com os poderes locais, por exemplo, toda uma nova gestão social da economia, de transformação dos mercados e de reapropriação dos mesmos por parte das populações. Tudo programas mínimos perfeitamente inseridos na realidade europeia.
O tempo que tanta gente perde a falar da crise da zona euro (que não é mais do que a crise sistémica global e a forma como ela afecta esta região) impede-os de verem questões tão básicas como a bancarrota fiscal nos USA e o tsunami que a falência económica e financeira norte-americana vai criar – não na zona euro – mas nos países emergentes, nos brics, no Mercosul, na Ásia e nas economias africanas que ainda não conseguiram processos de desdolarizaçäo na sua vida financeira e na sua realidade económica. E na Europa não integrada, principalmente na Grã-Bretanha, mas também no “paraíso social-democrata” norueguês, para além de mais um sério “afundanço” da Islândia nas vagas do tsunami yankee.
A Europa necessita de ser reapropriada por aqueles que constituem a sua identidade efectiva, por aqueles que a pensaram em primeiro lugar no calor das lutas por um mundo melhor e que hoje são dispensados pelos monopólios generalizadores e atirados para uma nova realidade prevalecente: o desemprego. A globalização não é um projecto capitalista é uma necessidade do capitalismo. Mas é um projecto proletário, patente nas palavras da Internacional. O mundo sem fronteiras pode muito bem começar pela Europa.
Fontes
Anselm Jappe; As aventuras da mercadoria. Para uma nova crítica do valor; Antígona, 2006.
Entrevista a Samir Amin; http://www.sinpermiso.info
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