Corriere
della Sera, Milão – Presseurop – imagem Ruben
L. Oppenheimer
Para o escritor
italiano Claudio Magris, o único meio para fazer face à estupefação provocada
pela crise económica e política europeia é a criação de um Estado federal
forte, descentralizado e respeitado.
Há umas semanas,
estive em Madrid, durante as manifestações contra o Governo e os confrontos com
a polícia, cujos âmbito e violência foram abundantemente descritos na
comunicação social.
Por acaso, fui
parar aos lugares “quentes” e experimentei um sentimento não de medo – pensei
em motins bem mais preocupantes, como os de Trieste logo a seguir à guerra e a
outros, nos anos de 1970, às batalhas nas ruas de Génova em 1960 ou aos que
tiveram lugar em 2011, por ocasião do G8 – mas de desconforto. Um desconforto
que se transformou, a pouco e pouco, num vago temor que ultrapassava a minha
pessoa, num verdadeiro perigo real.
As causas, muito
compreensíveis, que estiveram na origem da manifestação – as condições de vida
cada vez mais duras para cada vez mais pessoas, as dificuldades crescentes para
fazer face às necessidades fundamentais da população (saúde, assistência
social, reformas, trabalho) – faziam pesar uma atmosfera de tristeza e
confusão, faziam sentir fisicamente o peso dos cinzentos dias futuros e das vidas
de misérias e humilhações. Tudo isto concorria para esse sentimento de
insegurança recentemente mencionado por Zygmunt Bauman [o filósofo
de origem polaca].
Não se pode estar
vivo num mundo moribundo
Essa impressão de
um futuro frustrante e opaco não é a preocupação mais imediata da minha
geração. O futuro não nos interessa pessoalmente. O nosso universo é o presente
e esforçamo-nos por o agarrar, por tirar partido dele, por o afastar quando nos
faz sofrer. As pessoas da minha idade não se sentem tristes com as incertezas e
a austeridade provável dos amanhãs. A maior parte de nós já há muito tempo
jogou as cartas que tinha na mão, cartas que nos deram uma boa probabilidade de
nos sairmos suficientemente bem para o tempo que nos resta.
Mas aqueles para
quem hoje se abre essa época da vida em que se decide a existência, a sua
qualidade e o seu sentido, sentem-se prejudicados na sua exigência de se
expandirem, de construírem o seu próprio mundo, de fazerem valer o seu direito
à felicidade, tal como proclama a Constituição americana.
Então, o temor
apodera-se também de quem já nada tem a recear por si próprio e que, se se
tratasse apenas de si, continuaria a viver bem com as suas reservas pessoais,
ainda mais do que suficientes. Sente-se temeroso não apenas porque receia por
aqueles a quem quer mais do que a si próprio – os seus filhos e os seus netos –
mas porque somos todos responsáveis pelos destinos de todos e porque não
podemos ser felizes se estamos rodeados pela tristeza. Não podemos estar
verdadeiramente vivos num mundo moribundo.
Nesse mesmo dia, os
jornais de Madrid falavam do
fermento do separatismo que se intensifica na Catalunha com a consequente
involução e a paralisia da política de todo o país, desse grande país tão
dinâmico que é a Espanha, e da Europa em geral. Anda no ar uma sensação de
crepúsculo da Europa.
Estas manifestações
– semelhantes a outras de várias regiões da Europa – não parecem ser a
expressão de uma rebelião política, de um projeto alternativo, fosse ele
discutível ou inaceitável, mas ainda assim um projeto para o futuro; não
oferece minimamente a imagem de um exército preparado para o assalto, mas antes
de destacamentos que marcham a caminho da cerimónia do arrear da bandeira.
Uma mensagem
decisiva que nunca mais chega
A União Europeia,
com as suas comissões, as suas bizantinices, a sua prudência, as suas
necessidades de compromisso, as suas paralisantes jigajogas de vetos dos seus
Estados-membros, as suas mediações sem fim que cada vez mais se assemelham a
estagnação, pareciam – parecem – muito distantes, como o imperador do célebre
romance de Kafka, cuja mensagem decisiva está a caminho mas nunca chega.
E, durante esse
tempo, alimentados pela crise económica, espalham-se os miasmas do
nacionalismo, dos particularismos, dos localismos, das veleidades de
separatismo, limitados e cheios de rancores. Uma agitação absurda ganha cada
uma das nacionalidades, das etnias – as quais, evidentemente, devem poder
desenvolver-se plenamente, devem ou podem tornar-se um Estado (a Suíça deveria,
assim, separar-se em quatro Estados, coisa que os suíços não parecem ter a
mínima vontade que aconteça), persuadidos que estão que a sua retirada para um
separatismo rancoroso poderá resolver a crise económica.
A única realidade
possível para nós, a única que pode garantir a segurança e a estabilidade, é a
Europa. Um Estado europeu, um verdadeiro Estado – federal, descentralizado, mas
que tenha coesão e autoridade soberana, como os Estados Unidos da América – uma
Europa em que os atuais Estados nacionais se tornarão regiões, cada uma com a
sua autonomia, mas em que nenhuma teria, por exemplo, direito de veto sobre as
decisões políticas de um governo que governaria efetivamente, nem o direito de
fazer leis – e menos ainda Constituições – contrárias aos princípios da
Constituição europeia. Um Estado europeu cuja autoridade se manifesta não pelas
advertências e admoestações mas sim pela aplicação de um direito europeu por
todos reconhecido.
Um verdadeiro
Estado europeu é o único caminho possível para nos garantir um futuro digno.
Atualmente, os problemas não são nacionais, dizem-nos respeito a todos. É ridículo
que haja, por exemplo em diferentes países diferentes leis sobre a imigração,
tal como seria ridículo que sobre esse mesmo assunto houvesse leis diferentes
em Bolonha e em Génova. Um verdadeiro Estado europeu poderia, por outro lado,
reduzir uma parte importante dos custos, por exemplo, as despesas causadas pelo
excesso de comissões, de instâncias de representação e de instituições
parasitas.
A Europa é, em si
própria, uma grande potência e é doloroso vê-la frequentemente baixar-se ao
nível das querelas mesquinhas ou, pior ainda, ao nível de uma reunião de
condóminos tímidos e indefesos. Para estar à altura de si própria, para se
tornar verdadeiramente Europa, a União Europeia deveria ser governada com
decisão e autoridade, deveria renunciar aos seus ecumenismos nublosos e aos
seus medos de chamar à ordem aqueles que querem manter a sua casa limpa à custa
de deitarem o seu listo nos quintais dos vizinhos. É provável que a União
Europeia não esteja em posição de agir com uma firmeza inabalável, mas se
continuar por este arriscado caminho, o seu fim está muito próximo.
Combater a
melancolia e o mal-estar
Pela primeira vez
na História, está-se a tentar construir uma grande comunidade política sem o
instrumento da guerra. Ora, a recusa da guerra exige uma autoridade que
funcione; a indecisão não é democracia, é a sua morte. Se temos a impressão de
que a Europa unida está em vias de se esboroar, de se esfiapar, é natural que
aqueles que acreditam nela experimentem esse desconforto e se sintam
deprimidos, como naquela noite em Madrid.
Naturalmente, isso
não significa que nos deixemos cair na melancolia. Não estamos neste mundo para
nos deixarmos levar por um estado de alma, ou para ceder à tristeza dos nossos
pequenos eus, por vezes maldispostos por causa de uma má digestão. Com ou sem
desconforto, continuamos a trabalhar como podemos por aquilo que consideramos
ser justo – ou menos mau, com a obstinada convicção de que “non praevalebunt”,
não nos vencerão.
O desconforto e a
fadiga pessimista são dois males que temos de combater. Ainda para mais quando,
como atualmente, alastram cada vez mais e mais. Certamente, ao lermos os
grandes textos cheios de profissões de fé que nos deixaram os pais fundadores
da ideia de uma Europa unida, constatamos que, naquela época horrenda – como
dizia Karl Valentin, genial artista de cabaret e inspirador de Brecht – o
futuro era melhor.
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