José Manuel Pureza –
Diário de Notícias, opinião
Em janeiro de 2003,
Durão Barroso assinou com outros sete então líderes europeus - Aznar,
Berlusconi, Blair, entre outros - a carta aberta que dividiu a Europa entre os
Estados apoiantes do delírio de Bush e Rumsfeld contra o Iraque (a "nova
Europa", chamaram-lhe) e os Estados adeptos de uma posição autónoma e
crítica (a "velha Europa", desdenharam). Que ele tenha recebido o
Nobel da Paz em nome da União Europeia mostra como esta distinção é uma piada
de mau gosto.
O gesto foi
justificado com o discurso do costume: "A UE permitiu à Europa ter o mais
longo período de paz da sua História recente." É verdade que, por
referência às duas experiências traumáticas que foram a I e a II Guerras
Mundiais, o prolongado silêncio das armas na Europa tem um valor inestimável.
Isto dito, a coincidência temporal fica registada mas não explicada. A
justificação do prémio não justifica nada.
A simples
existência da UE como estrutura de integração económica e política não é
suficiente para explicar a paz prolongada na Europa. A paz pela integração dos
mercados e pela abdicação de soberania é uma tese frágil. Porque só funciona
para explicar a acalmia de quem ganha com a integração e de quem não é
demasiado lesado com a perda de soberania. Quem perde não quer essa paz que o
esmaga. E é claro que esses são sempre processos com ganhadores e perdedores.
Mais ainda: os ganhadores de hoje podem rapidamente tornar-se os perdedores de
amanhã.
O que garantiu a
longa paz na Europa não foi a UE mas, sim, o modelo social de complemento do
salário por serviços públicos e direitos sociais. A paz entre a França e a
Alemanha foi muito mais fruto do horizonte de ascensão social comum a ambos os
povos do que das reuniões de todos os dias em Bruxelas. Por outras
palavras, foi a paz positiva que foi garante da paz negativa na Europa nas
últimas cinco décadas. A Europa da paz foi a Europa assente num contrato social
amplo à escala de cada Estado e numa preocupação com a coesão social e a
justiça territorial à escala do conjunto da União. Essa Europa merece ser
distinguida pelo seu trabalho em prol de uma paz socialmente sustentada.
Sucede todavia que
desde 1992 que a Europa abandonou esse modo de ser um projeto de paz. Passou a
dar primazia inequívoca à competitividade em detrimento da coesão. Passou a dar
primazia ao ser mercado em detrimento do ser união. A arquitetura da União
Económica e Monetária, expressão da hegemonia do pensamento neoliberal, repudia
o modelo social e a democracia inclusiva em escala europeia em que a paz se
alicerçou. Esta mudança é agravada pelo renascimento de uma até agora não
revelada polarização moral e política entre "virtuosos" do Norte e
"preguiçosos" do Sul e pela imposição de um esquema de governação por
diretório com o esvaziamento das instituições formais de decisão.
A UE trocou a paz
positiva pela guerra social e tornou-se sua protagonista. A grande maioria dos
europeus tem hoje a sua vida refém e não beneficiária da integração. Sobre a
ruína dos equilíbrios sociais que alimentaram a paz feita de expectativas
positivas para o quotidiano das pessoas está a erguer-se um retorno aos
"tempos difíceis" de guerra social e, com eles, o anúncio de
horizontes de fragilização muito preocupante da paz mínima, negativa, de
silêncio das armas. Neste contexto, se se desse razão aos que sustentam que a
intenção do Comité Nobel foi afinal a de lembrar aos líderes europeus de turno
que a morte da paz-pela-justiça-social será a morte de todas as pazes na Europa
e fará morrer a UE, bem se poderá dizer que essa advertência nem cócegas faz
aos medíocres líderes europeus do momento. Porque é assumidamente contra essa
Europa que eles estão. Chamam-lhe "velha Europa", como fez Barroso em
2003.
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