sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

O NOBEL DA GUERRA

 


José Manuel Pureza – Diário de Notícias, opinião
 
Em janeiro de 2003, Durão Barroso assinou com outros sete então líderes europeus - Aznar, Berlusconi, Blair, entre outros - a carta aberta que dividiu a Europa entre os Estados apoiantes do delírio de Bush e Rumsfeld contra o Iraque (a "nova Europa", chamaram-lhe) e os Estados adeptos de uma posição autónoma e crítica (a "velha Europa", desdenharam). Que ele tenha recebido o Nobel da Paz em nome da União Europeia mostra como esta distinção é uma piada de mau gosto.
 
O gesto foi justificado com o discurso do costume: "A UE permitiu à Europa ter o mais longo período de paz da sua História recente." É verdade que, por referência às duas experiências traumáticas que foram a I e a II Guerras Mundiais, o prolongado silêncio das armas na Europa tem um valor inestimável. Isto dito, a coincidência temporal fica registada mas não explicada. A justificação do prémio não justifica nada.
 
A simples existência da UE como estrutura de integração económica e política não é suficiente para explicar a paz prolongada na Europa. A paz pela integração dos mercados e pela abdicação de soberania é uma tese frágil. Porque só funciona para explicar a acalmia de quem ganha com a integração e de quem não é demasiado lesado com a perda de soberania. Quem perde não quer essa paz que o esmaga. E é claro que esses são sempre processos com ganhadores e perdedores. Mais ainda: os ganhadores de hoje podem rapidamente tornar-se os perdedores de amanhã.
 
O que garantiu a longa paz na Europa não foi a UE mas, sim, o modelo social de complemento do salário por serviços públicos e direitos sociais. A paz entre a França e a Alemanha foi muito mais fruto do horizonte de ascensão social comum a ambos os povos do que das reuniões de todos os dias em Bruxelas. Por outras palavras, foi a paz positiva que foi garante da paz negativa na Europa nas últimas cinco décadas. A Europa da paz foi a Europa assente num contrato social amplo à escala de cada Estado e numa preocupação com a coesão social e a justiça territorial à escala do conjunto da União. Essa Europa merece ser distinguida pelo seu trabalho em prol de uma paz socialmente sustentada.
 
Sucede todavia que desde 1992 que a Europa abandonou esse modo de ser um projeto de paz. Passou a dar primazia inequívoca à competitividade em detrimento da coesão. Passou a dar primazia ao ser mercado em detrimento do ser união. A arquitetura da União Económica e Monetária, expressão da hegemonia do pensamento neoliberal, repudia o modelo social e a democracia inclusiva em escala europeia em que a paz se alicerçou. Esta mudança é agravada pelo renascimento de uma até agora não revelada polarização moral e política entre "virtuosos" do Norte e "preguiçosos" do Sul e pela imposição de um esquema de governação por diretório com o esvaziamento das instituições formais de decisão.
 
A UE trocou a paz positiva pela guerra social e tornou-se sua protagonista. A grande maioria dos europeus tem hoje a sua vida refém e não beneficiária da integração. Sobre a ruína dos equilíbrios sociais que alimentaram a paz feita de expectativas positivas para o quotidiano das pessoas está a erguer-se um retorno aos "tempos difíceis" de guerra social e, com eles, o anúncio de horizontes de fragilização muito preocupante da paz mínima, negativa, de silêncio das armas. Neste contexto, se se desse razão aos que sustentam que a intenção do Comité Nobel foi afinal a de lembrar aos líderes europeus de turno que a morte da paz-pela-justiça-social será a morte de todas as pazes na Europa e fará morrer a UE, bem se poderá dizer que essa advertência nem cócegas faz aos medíocres líderes europeus do momento. Porque é assumidamente contra essa Europa que eles estão. Chamam-lhe "velha Europa", como fez Barroso em 2003.
 

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