Vivemos em um mundo
onde o direito à vida é, constantemente, sobrepujado por outros direitos.
Tragédias como a de Santa Maria nos arrancam desse mundo e nos jogam em uma
dimensão onde as melhores possibilidades humanas parecem se manifestar: o
Estado e a sociedade, as pessoas, isolada e coletivamente, se congregam numa
comunhão terrena para tentar consolar os que estão sofrendo. A morte nos deixa
sem palavras. Mas ela nos diz, insistentemente: é preciso, sempre, cuidar dos
vivos e da vida. O artigo é de Marco Aurélio Weissheimer.
Marco Aurélio
Weissheimer – Carta Maior
Porto Alegre -
A dor provocada por tragédias como a ocorrida neste final de semana na cidade
de Santa Maria sacode a sociedade como um terremoto, despertando alguns de
nossos melhores e piores sentimentos. Um acontecimento brutal e estúpido que
tira a vida de 233 pessoas joga a todos em um espaço estranho, onde a dor
indescritível dos familiares e amigos das vítimas se mistura com a perplexidade
de todos os demais. Como pode acontecer uma tragédia dessas? A boate estava
preparada para receber tanta gente? Tinha equipamentos de segurança e saídas de
emergência? Quem são os responsáveis?
Essas são algumas das inevitáveis perguntas que começaram a ser feitas logo
após a consumação da tragédia? E, durante todo o domingo, jornalistas e
especialistas de diversas áreas ocuparam os meios de comunicação tentando
respondê-las. As redes sociais também foram tomadas pelo evento trágico. Os
indícios de negligência e falhas básicas de segurança já foram apontados e
serão objeto de investigação nos próximos dias. Mas há outra dimensão desse
tipo de tragédia que merece atenção.
É uma dimensão marcada, ao mesmo tempo, por silêncio, presença e exaltação da
vida. O governador do Rio Grande do Sul, Tarso Genro, disse na tarde deste
domingo que o momento não era de buscar culpados, mas sim de prestar apoio e
solidariedade às milhares de pessoas mergulhadas em uma profunda dor. Não é uma
frase fácil de ser dita por uma autoridade uma vez que a busca por culpados já
estava em curso na chamada opinião pública. E tampouco é uma frase óbvia. Ela
guarda um sentido mais profundo que aponta para algo que, se não representa uma
cura imediata para a dor, talvez expresse o melhor que se pode oferecer para
alguém massacrado pela perda, pela ausência, pela brutalidade de um
acontecimento trágico: presença, cuidado, atenção, uma palavra.
Quem já perdeu alguém em um acontecimento trágico e brutal sabe bem que o
caminho da consolação é longo, tortuoso e, não raro, desesperador. E é
justamente aí que emerge uma das melhores qualidades e possibilidades humanas:
a solidariedade, o apoio imediato e desinteressado e, principalmente, a
celebração do valor da vida e do amor sobre todas as demais coisas. A vida é
mais valiosa que a propriedade, o lucro, os negócios e todas nossas ambições e
mesquinharias. Na prática, não é essa escala de valores que predomina no nosso
cotidiano. Vivemos em um mundo onde o direito à vida é, constantemente,
sobrepujado por outros direitos. Tragédias como a de Santa Maria nos arrancam
desse mundo e nos jogam em uma dimensão onde as melhores possibilidades humanas
parecem se manifestar: o Estado e a sociedade, as pessoas, isolada e
coletivamente, se congregam numa comunhão terrena para tentar consolar os que
estão sofrendo. Não é nenhuma religião, apenas a ideia de humanidade se
manifestando.
Uma tragédia como a de Santa Maria não é nenhuma fatalidade: é obra do homem,
resultado de escolhas infelizes, decisões criminosas. Nossa espécie, somo se
sabe, parece ter algumas dificuldades de aprendizado. Nietzsche escreveu que
muito sangue foi derramado até que as primeiras promessas e compromissos fossem
cumpridos. É impossível dizer por quantas tragédias dessas ainda teremos que
passar. Elas se repetem, com variações mais ou menos macabras, praticamente
todos os dias em alguma parte do mundo e contra o próprio planeta.
Talvez nunca aprendamos com elas e sigamos convivendo com uma sucessão patética
de eventos desta natureza, aguardando a nossa vez de sermos atingidos. Mas
talvez tenhamos uma chance de aprendizado. Uma pequena, mas luminosa, chance. E
ela aparece, paradoxalmente, em meio a uma sucessão de más escolhas, sob a
forma de uma imensa onda de compaixão e solidariedade que mostra que podemos
ser bem melhores do que somos, que temos valores e sentimentos que podem
construir um mundo onde a vida seja definida não pela busca de lucro, de
ambições mesquinhas e bens materiais tolos, mas sim pela caminhada na estrada
do bom, do verdadeiro e do belo. A morte nos deixa sem palavras. Mas ela nos
diz, insistentemente: é preciso, sempre, cuidar dos vivos e da vida.
Fotos: Divulgação Deivid Dutra / A Razão (via Agência Brasil)
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