Daniel Oliveira –
Expresso, opinião
Usando a metáfora
dos reis magos para se referir à troika, Arménio Carlos referiu-se,
no seu discurso no final da manifestação dos professores, a Abebe Selassie como
"o mais escurinho, o do FMI". Esta forma de falar do etíope
representante do Fundo Monetário Internacional na troika causou
natural incómodo a muita gente. A mim também. E por isso escrevi que "esta
crise anda a fazer quase toda a gente perder o norte e o sul e coisas
extraordinárias vêm de quem menos se espera". Outros foram os que, com
mais ou menos veemência, se indignaram.
Em defesa de
Arménio Carlos vieram muitas outras pessoas, mais e menos anónimas. Com
argumentos variados. Uns, que nem deveriam merecer grandes comentários: criticar
Arménio Carlos para defender o representante do FMI, nas circunstâncias em que
o País vive, é dividir a oposição à troika e ajudar o inimigo. A ver
se nos entendemos: considero a troika inimiga dos interesses do País e da
justiça social. Mas isso não permite tudo. E não me permitirá a mim, com toda a
certeza, esquecer outros valores e outros combates tão essenciais como os que
agora se travam. O facto de ser dito pelo líder da CGTP, organização em que
muitas vezes me revejo, torna a coisa mais grave para mim. Se não criticamos os
nossos nunca teremos autoridade para criticar os outros.
Outro argumento foi
um pouco mais sonso: então ele não é mesmo mais escurinho? Qual é o problema? A
não ser que passe a ser normal responsáveis políticos referirem-se a adversários
desta forma, tudo bem. Será, assim, natural ouvir em intervenções públicas
falar do ministro das finanças alemão como o "aleijadinho" (ele, de
facto, anda de cadeira de rodas, não anda?), a António Costa como o
"monhé" (ele, de facto, tem origem indiana, não tem?), a Jaime Gama
como o "badocha" (ele, de facto, tem uns quilos a mais, não tem?), a
Ana Drago como a "pequenota" (ela, de facto, é baixa, não é?), a
Mário Soares como o "velhadas" (ele, de facto, já não é jovem, pois
não?), a Miguel Vale de Almeida como "larilas" (ele, de facto, assume
publicamente a sua homossexualidade e faz da luta pelos direitos LGBT uma parte
fundamental do seu combate político, não faz?). Espera-se, no entanto, que o
debate público mantenha algumas regras de civilidade. E, sobretudo, que não
alimente alguns preconceitos importantes. Arménio Carlos não disse o que disse
num café, onde a conversa se pode aligeirar sem problemas. Disse o que disse
numa intervenção pública oficial.
Por fim, porque não
há oportunidade em que a expressão não seja usada a propósito ou a
despropósito, veio a costumeira acusação do "politicamente
correto". A ver se nos entendemos: o politicamente correto tem um sentido.
E esse sentido resume-se assim: as palavras não são neutras e carregam consigo
história, cultura e política. Por isso, devemos usá-las com correção. Não quer
isto dizer que devemos ser bem comportados ou que devamos fazer de cada frase
um manifesto político. Quer dizer que não devemos usar as palavras ao calhas.
Pelo menos quando estamos a falar ou a escrever na arena pública e não
conhecemos as convicções mais profundas dos nossos interlocutores. Há, claro,
excessos de purismo no politicamente correto. Que me irritam, como me irritam
todos os purismos. Mas o princípio está certo e não é preciso ser especialmente
adepto dele para não gostar de ouvir falar de um responsável público como
"escurinho".
Portugal é um país
racista. Tem uma longa história de racismo. E uma longa história de negação
desse racismo. É um racismo suave, sorrateiro, com diminuitivo (como
"escurinho"), que não se exibe de forma descarada na praça pública.
É, talvez, das formas mais insidiosas de racismo. E um homem que se enquadra
numa corrente política com provas na luta contra o racismo e a discriminação,
como Arménio Carlos, tem obrigação de saber isto. É por isso que o
incómodo com esta afirmação deve ser maior por vir da sua boca. Não duvido, no
entanto, que se a expressão tivesse sido dita por um homem de direita a
indignação seria muito mais violenta. E mal. A direita tem, nesta matéria,
menos responsabilidades. Não porque a direita seja, em geral, racista, mas
porque acredita, em geral, que os portugueses não o são. É, por isso, menos
vigilante consigo própria.
Se repararmos, Abebe
Selassie é o primeiro negro com algum poder real em Portugal. Ou seja, num
país razoavelmente multiétnico, o primeiro negro com algum poder só o consegue
ter porque esse poder não resultou da vontade dos portugueses. Há, que me
lembre, apenas um deputado negro no parlamento - e é do CDS. Não há nenhum
presidente de Câmara, nenhum ministro, nenhum secretário de Estado. Isto tem de
querer dizer qualquer coisa. Ou quer dizer que os portugueses não votam em
negros ou quer dizer que a generalidade dos negros não consegue ascender socialmente
no nosso país para chegar a cargos públicos relevantes. Porque são
geralmente discriminados ainda antes de chegarem à fase de poder ascender a
estes cargos. São discriminados na distribuição do rendimento, dos
empregos, das oportunidades. E é neste contexto, e não numa sociedade que
dá a todos, independentemente da sua etnia, as mesmas oportunidades, que
Arménio Carlos falou de um "escurinho".
Arménio Carlos não
se referiu aos outros dois representantes da troika como "o
carequinha" e o "loirinho". E é normal. Carecas e loiros há em
muitos cargos semelhantes. Não chega a ser um elemento distintivo.
"Escurinhos" é que há poucos. Ou melhor, não há nenhum. Só que essa
característica física não é comparável a outras que aqui referi. Ela é causa de
uma discriminação muitíssimo mais profunda. E foi isso que Arménio Carlos, sem
o querer, acentuou: em vez do nome e do cargo, sobrou a Selassie (que eu
aqui já critiquei violentamente sem me ocorrer falar da sua cor de pele) o
facto de ser "escurinho".
Selassie não
foi identificado como etíope, que é, como técnico do FMI, que também é, como
alguém que usa óculos, que usa, que é careca, que também é, ou que é
politicamente incompetente, que parece ser. É negro. Não pretendo que sejamos
cegos perante a negritude. O que fica claro é que, mal surge um pessoa com
algum poder no nosso país que seja negra passa a ser essa a forma mais evidente
de a identificar. Com direito a dimunitivo. Que isso aconteça num café ou
entre amigos não me choca. Que seja essa a forma como o secretário-geral da
CGTP se refere a um adversário político - e o facto de ser um adversário
político e da frase ter sido dita no contexto de um ataque político só torna a
coisa mais grave - numa iniciativa pública é relevante.
Arménio Carlos é
racista? Não me parece. Mas a indignação não resulta de uma qualquer avaliação
do carácter ou das características políticas de Arménio Carlos. Resulta do que
a frase que proferiu num contexto oficial acrescenta ao discurso político em
Portugal. Mais grave: o que ela acrescenta ao combate a uma intervenção externa
que está a deixar as pessoas desesperadas. A intervenção externa é
condenável, mas nunca se pode passar a ideia que ela é condenável porque
envolve um "boche" ou um "escurinho". Porque, mesmo que não
seja essa a intenção de quem assim falou, isso transforma uma resistência em
defesa da soberania democrática num ataque xenófobo. Repito: mesmo que não
seja, e estou seguro de que não era, a vontade de Arménio Carlos. É que o sentido
das palavras ditas na arena pública não depende da vontade de quem as diz.
Dirigindo-se indistintamente a todos - e também a quem seja, e são muitos,
racista -, é apropriável por todos. Por isso somos obrigados a especiais
cuidados quando as dizemos no espaço público.
Arménio Carlos já
veio dizer que não sabe de ninguém que tenha ficado pessoalmente incomodado. E
que se alguém ficou, transmite as suas desculpas. Arménio Carlos é um político
e tem obrigação de saber que a questão não é o incómodo pessoal de cada um. O
confronto político permite o incómodo dos outros. Ele até poderia
insultar Selassie. Mas deve pensar bem se o insulto que escolhe
corresponde aos valores políticos que defende. A questão é o que a
expressão, ainda mais com o diminutivo paternalista, revela. E se há coisa que
um político tem de saber é que as palavras, sendo parte fundamental do seu
ofício, são importantes. Um trabalhador pode ser um "colaborador"?
Pode. Um despedimento colectivo pode ser uma "reestruturação" de uma
empresa? Pode. E, como tão bem sabe Arménio Carlos, não é indiferente se usa
umas ou outras expressões. Mesmo que ninguém fique pessoalmente incomodado por
ser chamado de "colaborador". Porque, como gritava Nanni
Moretti, "as palavras são importantes". E em política elas são muito importantes.
Mesmo quando não se quer ofender ninguém.
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