NRC
HANDELSBLAD, AMESTERDÃO – Presseurop
A austeridade e os
ditames dos mercados criaram uma multidão de novos "fiéis" forçados:
os precários. Eles ameaçam a joia da civilização europeia, a segurança social,
diz o escritor belga Geert Van Istandael. Excertos.
Conhece a paróquia
de São Precário? Mesmo sem guia, não terá dificuldade em encontrá-la e, no dia
em que lá chegar, terá bons motivos para desesperar.
Porque, na paróquia
de São Precário, não há lugar para a esperança. A grande maioria dos
paroquianos trabalha por um salário de miséria para manter os privilégios do alto
clero, que substituiu a teologia pela economia.
Os números
relativos ao crescimento são brilhantes, na paróquia de São Precário. Ali, o
orçamento é sempre excedentário. Como é possível? É simples. Baixem-se os
salários. E, acima de tudo, há que banir a solidariedade. Acabaram-se todos os
encargos sociais dispendiosos, que, em tempos passados, era preciso pagar a
reformados egoístas, desempregados preguiçosos e doentes imaginários. E viva a
minoria privilegiada, selecionada a pente fino.
No reino de TINA
Qual é o aspeto da
igreja paroquial de São Precário? O edifício só tem paredes altas e nada de
janelas ou teto, para proteger os paroquianos da chuva ou dos ardores do sol.
Nem pense em escalar as paredes, porque ficará sem unhas. Por cima do altar,
flutuam as letras TINA, que, em latim moderno, significam: There Is No
Alternative – não há alternativa. [slogan politico atribuído a Margaret
Thatcher quando era primeira-ministra do Reino Unido].
Mas não pense que a
paróquia de São Precário é fruto da imaginação excessiva de um poeta
melancólico. São Precário existe mesmo. Em Milão, em 2004, realizou-se a
primeira procissão em que desfilou a imagem de São
Precário. O espantoso é que o cortejo era integrado unicamente por jovens,
novos diplomados, novos trabalhadores, novos desempregados. Esses jovens
imploravam a clemência de São Precário.
Recordo-vos um dos
significados de precarius: obtido pela prece ou pela súplica. Os caprichos
daquele que dá são imprevisíveis. Hoje, deixa cair na Europa umas raras moedas
de ouro. Amanhã, com um gesto desenvolto, lança ainda mais raras moedas de ouro
aos chineses ou aos nigerianos. Chama-se a isto "globalização". E a
globalização é o futuro.
Zelo religioso cego
A minha tese é
esta: a crise económica e financeira que há quatro anos atinge a Europa é
utilizada para destruir as bases da civilização europeia, o Estado providência,
a democracia.
É utilizada. Mas
por quem? Pela Comissão Europeia e pelo Banco Central Europeu, e, sem dúvida
alguma, também pelo Conselho de Ministros, e, fora da Europa, pelo Fundo
Monetário Internacional, embora possamos notar que, no seio desta última
instituição, está em curso uma luta feroz sobre as linhas de orientação a
seguir. Por outro lado, num número demasiado grande de Estados-membros da
União, os políticos comportam-se como missionários, difundindo a mensagem
destruidora com um zelo religioso cego.
As fileiras dos
paroquianos crescem. Todos os dias. Em Espanha, em Portugal, na Grécia e em
Itália, vemos que este tipo de economia, que nós deixamos causar estragos,
estrangula a juventude.
Mas começa a
fazer-se luz. Em novembro de 2008, o pensador político Jürgen Habermas, talvez
o mais importante da Alemanha de hoje, falou de injustiça social, no jornal Die Zeit.
Se Habermas não
fosse um homem tão ponderado, eu diria que é um profeta. As elites reinantes
anularam unilateralmente o seu grande contrato tácito com o cidadão. O contrato
era este: a classe dominante pode amealhar a riqueza que quiser, desde que o
cidadão comum ganhe razoavelmente o seu pão e beneficie além disso de segurança
social adequada. Esse contrato foi quebrado.
A tecnocracia acima
da democracia
Segundo os patrões
do BCE, Mario Draghi, da Comissão, José Manuel Durão Barroso, e do Conselho,
Herman Van Rompuy, o fim da crise está a desenhar-se no horizonte. Mas os
mercados financeiros mantêm a Europa sob o seu jugo. A Europa bem pode
debater-se furiosamente: a sorte não muda. Ou então apenas durante três horas,
como da vez em que o BCE concedeu €100 mil milhões a Espanha. Quanto muito,
isso durou um dia, talvez uma semana.
Desde que Draghi
conseguiu que o seu conselho de administração permitisse que o banco comprasse
obrigações do Estado de países em dificuldades, através do Mecanismo
Europeu de Estabilidade, para assim fazer descer claramente os juros dessas
obrigações, os mercados financeiros parecem estar um pouco menos ferozes. Quem
irá ainda espantar-se por os países que precisam desse apoio serem obrigados a
rastejar, por, nesses países, a democracia ceder portanto perante a
tecnocracia?
Mas há outra coisa.
Aquilo que o BCE decidiu equivale a cunhar moeda. É apenas uma sátira dizer
que, se chegarmos a isso, Mario Draghi vai pôr a trabalhar a prensa das notas.
E eu que sempre pensei que isso era mais coisa de pessoas como Mobutu.
Empurrados a
chicote
Não são só os
populistas, os comunistas e os fascistas puros e duros a pensar que há qualquer
coisa que não bate certo na tática e na estratégia europeia. São cidadãos
pacíficos e trabalhadores que sentem o coração apertar-se de angústia, cidadãos
que só querem uma habitação modesta, que querem ter filhos e um salário que
permita que a sua família tenha uma vida decente. Mas eles nem sequer isso nos
concedem, tentam tirar-nos essa pequena felicidade, empurram-nos a chicote para
a paróquia de São Precário.
Um emprego pago a
um preço justo, uma pequena casa, uma família. É aquilo a que chamo desejos
racionais. Mas cada vez mais parece que só tem direito à existência uma
racionalidade: a racionalidade económica, que determina que as pessoas tentem
sempre obter para si o lucro máximo.
Esta paz em casa,
no jardim e na cozinha, esta ambição limitada mas democraticamente apoiada só
foi possível graças a uma das maiores conquistas da civilização europeia. Estou
a falar do Estado Providência ou, simplesmente, da segurança social.
Inimigo da
civilização europeia
Devemos qualificar sem
reservas a segurança social, tal como a construíram a Bélgica, a Suécia, a
França, a Holanda e, até há pouco tempo, também a Alemanha, a partir do século
XIX e, sobretudo, ao longo dos anos do pós-guerra, como joia da civilização
europeia, tão preciosa como as joias das catedrais francesas, as sinfonias de
Beethoven, os quadros de Vermeer, o Fausto de Goethe ou os romances de Camus. A
construção e a preservação da segurança social requerem uma visão, imaginação,
conhecimentos técnicos, engenhosidade, racionalidade; exatamente as capacidades
de que Beethoven precisava para compor as suas sinfonias.
Por conseguinte, se
o senhor Draghi diz no Wall Street Journal que
o modelo social da Europa já desapareceu e que o contrato social tradicional do
continente está ultrapassado, o grande patrão do BCE está a apontar-se a si
mesmo como inimigo da civilização europeia. Draghi faz parte do alto clero da
paróquia de São Precário.
Sem comentários:
Enviar um comentário