THE
GUARDIAN, LONDRES – Presseurop – imagem Beppe Giacobbe
O espírito de
ditadores como Nicolae Ceausescu ganha nova vida na resposta da elite europeia
à crise da zona euro, assegura o pensador esloveno Slavoj Žižek. A mesma
desconfiança na democracia que outrora restringiu o desenvolvimento dos países
pós-comunistas está agora a ganhar terreno na Europa. Excertos.
Numa das últimas
entrevistas antes da queda do regime, um jornalista ocidental perguntava a
Nicolae Ceausescu como justificava o facto de os cidadãos romenos não poderem
viajar livremente para o estrangeiro, embora a liberdade de circulação
estivesse garantida na Constituição.
A sua resposta fez
jus à melhor tradição do raciocínio estalinista: é verdade, a Constituição
garante a liberdade de circulação, mas também garante o direito a uma vida
segura e próspera. Portanto, temos aqui um potencial conflito de direitos: se
os cidadãos romenos fossem autorizados a deixar o país, a prosperidade da sua
terra natal ficaria ameaçada. Neste conflito, há que fazer escolhas, e o
direito a uma pátria próspera e segura goza de clara prioridade...
Parece que o mesmo
espírito está bem vivo na Eslovénia de hoje. No mês passado, o Tribunal
Constitucional considerou que fazer um referendo sobre legislação de criação de
um “mau banco” e uma holding soberana seria inconstitucional, o que equivale a
proibir uma votação popular sobre o assunto. O referendo foi proposto pelos
sindicatos, num desafio à política económica neoliberal do Governo, e a
proposta recolheu assinaturas suficientes para torná-lo obrigatório.
Bruxelas entrou em
pânico
A ideia de “mau
banco” consiste num lugar para transferir todo o crédito tóxico dos principais
bancos, a ser recuperado com dinheiro do Estado (ou seja, à custa dos
contribuintes), evitando assim qualquer investigação séria sobre quem foi
responsável por esse mau crédito. Esta medida, debatida durante meses, está
longe de ser consensual, mesmo para especialistas financeiros. Então, porquê
proibir o referendo?
Em 2011, quando o
Governo de George Papandreou, na Grécia, propôs umreferendo sobre
as medidas de austeridade, Bruxelas entrou em pânico, mas nem assim alguém se
atreveu a proibi-lo diretamente.
Segundo o Tribunal
Constitucional esloveno, o referendo “teria acarretado consequências inconstitucionais”.
Como? O tribunal reconhece o direito constitucional do referendo, mas alega que
a sua execução poria em perigo outros valores constitucionais que devem ter
prioridade em tempos de crise económica: o eficiente funcionamento do aparelho
de Estado, nomeadamente a criação de condições para o crescimento económico; e
o exercício dos direitos humanos, especialmente os direitos à segurança social
e à livre iniciativa económica.
Em suma, para
avaliar as consequências do referendo, o tribunal aceita simplesmente como um
facto que não obedecer aos ditames das instituições financeiras internacionais
(ou não satisfazer as suas expectativas) pode levar a uma crise política e
económica, e é, portanto, inconstitucional. Sem rodeios: como corresponder a
esses ditames e expectativas é condição para manter a ordem constitucional,
pelo que passam a ter prioridade sobre a Constituição (e o mesmo é dizer, a
soberania do Estado).
Tendência para a
limitação da democracia
A Eslovénia pode
ser um país pequeno, mas esta decisão é um sintoma de uma tendência mundial
para a limitação da democracia. A ideia é que, numa situação económica complexa
como a de hoje, a maioria das pessoas não está qualificada para decidir – não
se apercebem das consequências catastróficas que decorreriam se as suas
exigências fossem atendidas.
Este tipo de
argumentação não é novo. Numa entrevista na televisão há um par de anos, o
sociólogo Ralf Dahrendorf associava a crescente desconfiança na democracia com
o facto de, após cada mudança revolucionária, o caminho para a nova
prosperidade atravessar um “vale de lágrimas”. Após o colapso do socialismo
[regimes com ênfase no Estado social], não é possível passar diretamente para a
abundância de uma economia de mercado livre bem-sucedida: há que desmantelar o
limitado, mas real, apoio e segurança social socialistas, e esses primeiros
passos são necessariamente dolorosos.
O mesmo se aplica à
Europa Ocidental, onde a passagem do Estado social do pós-guerra para a nova
economia global envolve renúncias dolorosas – menos segurança, menos garantias
de assistência social. Para Dahrendorf, o problema restringe-se ao simples
facto de esta travessia dolorosa do “vale de lágrimas” durar mais tempo do que
o período médio entre eleições, pelo que há uma grande tentação em adiar as
mudanças difíceis em nome de ganhos eleitorais de curto prazo.
Populismo que
termina em catástrofe
Para ele, o
paradigma é a deceção de amplos estratos de nações pós-comunistas em relação
aos resultados económicos da nova ordem democrática: nos dias gloriosos de
1989, equiparava-se democracia com a abundância das sociedades consumistas
ocidentais; 20 anos depois, a abundância continua a não chegar, e culpa-se a
própria democracia.
Infelizmente,
Dahrendorf concentra-se muito pouco na tentação oposta: se a maioria resiste às
mudanças estruturais necessárias à economia, não seria uma conclusão lógica
pensar que, durante uma década ou mais, uma elite esclarecida devia tomar o
poder, até por meios não democráticos, para obrigar à aplicação das medidas
necessárias e, assim, lançar as bases de uma democracia verdadeiramente
estável?
Na mesma linha de
pensamento, o jornalista Fareed Zakaria apontava há dias que a democracia só
pode “pegar” em países economicamente desenvolvidos. Se os países em
desenvolvimento forem “prematuramente democratizados”, o resultado é um
populismo que termina em catástrofe económica e despotismo político – não
admira que os países do Terceiro Mundo (Formosa, Coreia do Sul, Chile) hoje
economicamente mais bem-sucedidos só tenham abraçado a plena democracia após um
período de governo autoritário. Já agora, esta linha de pensamento não fornece
o melhor argumento ao regime autoritário da China?
O que é novo hoje é
que, com a crise financeira que começou em 2008, está a ganhar terreno, também
no próprio Ocidente, este tipo de desconfiança na democracia – em tempos limitado
ao Terceiro Mundo e aos países pós-comunistas em desenvolvimento. O que, há uma
ou duas décadas, eram conselhos paternalistas para os outros, agora diz-nos
respeito também a nós.
Reduzir défices
rapidamente é contraproducente
O mínimo que se
pode dizer é que esta crise vem provar que não é o povo, mas os especialistas
que não sabem o que andam a fazer. Na Europa Ocidental, estamos efetivamente a
testemunhar uma crescente incapacidade da elite dominante – sabem cada vez
menos como governar. Veja-se como a Europa está a lidar com a crise grega:
exercendo pressão sobre a Grécia para pagar dívidas, mas, ao mesmo tempo,
arruinando-lhe a economia com imposição de medidas de austeridade, garantindo
assim que a dívida grega nunca será reembolsada.
No final de outubro
do ano passado, o próprio FMI publicou
um relatório mostrando que os danos económicos de medidas de austeridade
agressivas podem ser três vezes maiores do que inicialmente se supunha,
anulando assim o seu próprio conselho sobre austeridade na crise da zona euro.
Agora, o FMI admite que forçar a Grécia e outros países sobrecarregados de
dívidas a reduzir os seus défices muito rapidamente é contraproducente, mas só
depois de centenas de milhares de postos de trabalho terem sido perdidos devido
a tais “erros de cálculo”.
E é essa a
verdadeira mensagem dos protestos populares “irracionais” por toda a Europa: os
manifestantes sabem muito bem o que desconhecem; não têm a pretensão de ter
respostas rápidas e fáceis para dar. Mas o que o seu instinto lhes diz não
deixa de ser verdade: que quem está no poder também não sabe o que anda a
fazer. Na Europa de hoje, são cegos a guiar outros cegos.
Traduzido por Ana
Cardoso Pires
1 comentário:
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