Um dos mais
sanguinários dos muito sanguinários generais ditadores que assolaram a
Guatemala, Efraín Ríos Montt, está sentado no banco dos réus, acusado de
genocídio e crimes contra a humanidade, entre outras selvagerias menores.
Eric Nepomuceno - Carta Maior
A Guatemala vive um
processo que eu e a maioria dos guatemaltecos pensávamos que jamais aconteceria:
um dos mais sanguinários dos muito sanguinários generais ditadores que
assolaram o país, Efraín Ríos Montt, está sentado no banco dos réus, acusado de
genocídio e crimes contra a humanidade, entre outras selvagerias menores. Ao
lado dele, também sendo julgado, está outro general, Mauricio Rodríguez
Sánchez, seu chefe de inteligência militar, a tenebrosa G-2.
Foi curto o tempo de presidência do agora réu: durou de março de 1982 a agosto
de 1983. Chegou ao poder graças a um golpe de Estado, perdeu o poder graças a
outro golpe.
Em um país com formidável histórico de golpes militares e ditaduras
sanguinárias, Ríos Montt conseguiu a proeza de ter sido excepcionalmente
brutal. Pastor de uma dessas seitas evangélicas criadas do nada, em seus
dezesseis meses de poder absoluto criou grupos paramilitares batizados de PAC –
as Patrulhas de Autodefesa Civil – que mataram pelo menos vinte mil
assassinatos. Cerca de cem mil guatemaltecos se refugiaram nos países vizinhos,
principalmente México e Honduras, e mais de um milhão foram expulsos de suas
cidades e povoados e passaram a vagar pela Guatemala à procura de um lugar onde
sobreviver.
A ditadura de Ríos Montt foi especialmente cruel com os indígenas, que são a
esmagadora população do país. Não por acaso desde 1999 tentam abrir processos
contra ele – na Guatemala, na Espanha –, sempre em vão. Entre outras razões,
porque apesar de seus feitos brutais ele conseguiu se eleger varias vezes
deputado. Perdeu a última eleição e, com ela, a imunidade parlamentar.
Rigoberta Menchú, a índia que ganhou o prêmio Nobel da Paz, denunciou Ríos
Montt e outros generais por tortura, genocídio, prisão ilegal e terrorismo de
Estado diante de um tribunal espanhol. Um juiz foi até a Guatemala para
interrogar os denunciados. Não conseguiu interrogar ninguém. E ficou no ar a
amarga impressão de que jamais aconteceria nada contra os militares assassinos.
Pois agora aconteceu. E o que se ouve no tribunal é assustador. Os depoimentos
das vítimas, principalmente das mulheres, são estarrecedores. As violações
sexuais se davam em massa, ninguém – não interessava a idade – escapava. Depois
de assassinar indiscriminadamente homens e rapazes, depois de devastar lavouras
e incendiar aldeias, os soldados se davam à sanha perversa com as mulheres. Há
relatos demolidores de pessoas que foram queimadas vivas, de membros decepados,
orelhas e línguas amputadas, olhos vazados. E os estupros coletivos em praça
pública. Um horror capaz de superar a mais demencial das imaginações.
Para ouvir esses relatos, quem preside o tribunal que julga Ríos Montt e seu
assecla é uma mulher com nome delicado: a juíza se chama Jazmín Barrios. A
acusação tem um número concreto: 1.771 indígenas da etnia ixil foram
assassinados pelos militares durante os 16 meses de poder absoluto de Ríos
Montt. É menos de dez por cento do total de mortos, em sua imensa maioria
maias.
O general de 86 anos repete, numa ladainha inalterada, que reconhece que houve
‘alguns excessos’, mas garante que não sabia de nada, que não ordenou nada, que
não permitiu nada.
Em cada sessão do tribunal da juíza Jazmín Barrios são ouvidas doze pessoas.
Doze sobreviventes de massacres. Doze vozes que contam o horror dos horrores
diante de um ancião que permanece inalterado enquanto ouve o que aconteceu em
seus tempos de ditador supremo.
É raro – raríssimo, aliás – que ex ditadores sejam levados aos tribunais para
responder por terrorismo de Estado. A Argentina é uma exceção particular:
vários generais ditadores foram condenados a penas pesadíssimas de prisão. Na
Guatemala, parecia impensável.
Entre outras mazelas, o país conta – ou contava até agora – com um sistema
judicial olimpicamente inepto e corrompido. Graças a isso, para não mencionar
as pressões gritantes dos militares, a impunidade parecia estar assegurada para
sempre. O panorama mudou.
O julgamento de Ríos Montt e Rodríguez Sánchez é o primeiro. A Guatemala se
confronta com as chagas abertas do seu passado. E poderá encontrar no resgate
da verdade, na preservação da memória e na aplicação da justiça o tão
necessário antídoto para deixar de ser uma sociedade envenenada pelos longos,
longuíssimos anos de horror.
Fotos: Telesur
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