Daniel Oliveira –
Expresso, opinião
Desculpem não me
concentrar no que José Eduardo dos Santos disse sobre os negócios com Portugal,
Brasil e, seja lá qual for o interesse, Israel. Não tenho negócios em Angola e
esse não é o assunto que mais me comove. Prefiro olhar para o que disse o Presidente
sobre o seu próprio governo e a vida política e social angolana.
Sobre isto, José
Eduardo dos Santos disse três coisas. Que luta contra a pobreza, está a
construir um Estado Social e que essa pobreza resulta da herança colonial. Que combate
a corrupção. E que os protestos que existem são de umas poucas centenas de
jovens que não conseguiram ter sucesso na sua vida profissional e académica.
Sendo verdade que
Portugal não deixou, na sua miserável colonização, mais do que pobreza, ressentimento
e quase nenhumas infraestruturas, passaram 40 anos. Sim, houve a guerra civil.
Mas ela já terminou há algum tempo. Angola é um dos países com mais recursos em
África. Teve um crescimento impressionante e dinheiro é coisa que não lhe
falta. Apesar de produzir 1,7 milhões de barris de petróleo por dia, estava, em
2010, em 146º lugar, num total de 169 países, no relatório do PNUD. E, apesar
deste enorme atraso, gasta mais dinheiro em formação militar do que no ensino
básico. O crescimento económico angolano, como todos sabem, resultou em muito
pouco para a maioria da população. Ele traduziu-se quase exclusivamente num
enriquecimento pornográfico de uma pequeníssima franja da população. Quase toda
ligada ao regime.
E isto permite
falar do segundo ponto. O combate à corrupção. A não ser que a família Dos
Santos tenha fortuna antiga desconhecida, como se explica a concentração de
riqueza nos seus próprios filhos se não através do favorecimento descarado do
Estado? Como pode o Presidente, sem se rir (por acaso até acho que se riu),
dizer que há uma punição de quem fica com o que não lhe pertence quando é a sua
família é o mais claro exemplo dessa apropriação ilegítima?
Todos sabem que
quem queira fazer negócios em Angola tem que dar dinheiro a ganhar à sua filha Isabel
dos Santos. Que esta começou, ainda muito jovem, num negócio milionário de
saneamento público, em Luanda, e nunca mais parou. Que é dona de meio país. Que
este prodígio empresarial tem negócios, em Angola, Portugal e por esse mundo
fora, no petróleo, nos cimentos, na banca, na comunicação social, na hotelaria,
nos diamantes, nas telecomunicações. Que, com apenas 40 anos, tem uma fortuna
de pelo menos dois mil milhões de dólares, é a 736ª pessoa mais rica do mundo,
a 31ª de África e a primeira de Angola. Tudo, evidentemente, por talento
próprio. Mas é coisa que corre no sangue da família. Os outros dois filhos do
Presidente compram órgãos de comunicação como fossem ao mercado e dedicam-se
com especial afinco aos investimentos televisivos angolanos, com a preciosa
ajuda da TPA.
Não pode, no
entanto, dizer-se que a família Dos Santos seja gananciosa. Manuel Vicente, o
seu vice, tem uma sociedade com o ministro de Estado e Chefe da Casa de
Segurança do Presidente, general Manuel Hélder Vieira Dias "Kopelipa,"
e o general Leopoldino Fragoso do Nascimento, na empresa Nazaki Oil & Gaz,
que detém um terço dos blocos petrolíferos de pré-sal 9 e 21 e que se prepara
para vender à Sonangol. Isto, sem esquecer os seus generais mais queridos, que
também não se queixam da vida e torram o dinheiro dos angolanos em Portugal, na
Europa e nos EUA. Seguramente toda esta gente soube poupar os seus magros
salários no funcionalismo público. Este é o Estado Social angolano. Distribui,
é verdade, a riqueza. Por familiares, amigos, generais, quadros do MPLA,
membros do governo. Se sobrarem umas poucas migalhas talvez fique alguma coisa
para Angola.
Para ser mais
claro: a corrupção em Angola tem um rosto. É o rosto que ontem vimos na SIC. É
esta, e não a péssima herança colonial, a razão da miséria angolana. A não ser,
claro, que a herança a que o Presidente se refere seja a do nepotismo e
compadrio. Aí sim, teremos de reconhecer a nossa culpa: José Eduardo dos Santos
é o legítimo herdeiro do pior da nossa cultura. Mas pode orgulhar-se de ter
refinado muito a arte de bem roubar e ter dado, nesta matéria, novos mundos ao
Mundo.
Sobre os jovens que
não se integraram na vida profissional e académica, talvez esteja a falar dos professores
em greve por causa de salários em atraso, porque o dinheiro que a família Dos
Santos e seus amigos gastam não chega para todos. Ou talvez dos camponeses
assassinados nas zonas diamantíferas da Lunda Norte, com a conivência das
forças policiais. Ou de Emiliano Catumbela, de 22 anos, detido por ter
participado numa tentativa da vigília e que entretanto foi barbaramente
torturado pela polícia. Uma vigília que recordava Isaías Cassule e António
Alves Kamulingue, dois ativistas desaparecidos há um ano depois de terem
organizado uma manifestação de guardas presidenciais e veteranos de guerra,
devido a queixas de salários e pensões por pagar. Ou dos moradores do bairro da
Areia Branca, junto à marginal de Luanda, que foram escorraçados pela polícia e
viram as suas cinco mil casas demolidas em três dias, sem saberem qual será o
seu próprio destino. Porque com tanto dinheiro para gastar a elite angolana
quer as boas vistas para si própria. Note-se que todos os casos referidos não
aconteceram nos últimos anos. Não aconteceram nos últimos meses. São um sucinto
resumo, apenas com alguns casos, do mês passado. Todos os meses, mês após mês,
anos após anos, estes jovens que não singraram na vida profissional sentem o
que é a "estabilidade política e social em Angola".
Era sobre tudo isto
que eu gostava de ter ouvido José Eduardo dos Santos falar. É para falar destas
coisas que jornalistas fazem entrevistas. Para incomodar os de dentro e os de
fora. Desculpem a minha falta de patriotismo. Por esquecer os importantes
negócios que "os portugueses" podem fazer em Angola e que Isabel dos
Santos e meia dúzia de protegidos do Presidente podem fazer em Portugal.
2 comentários:
Ta mal muito mal a pouca esperança q tnha d encontrar um bom emprego agora acabou d x
Como angolana ferrenha, não poderia ter escrito melhor! Belo texto!
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