segunda-feira, 17 de junho de 2013

O IRAQUE. O FARDO DOS NOVOS COLONOS



Rui Peralta, Luanda

I - Os iraquianos que acreditam ser possível um Iraque independente e democrático, sabem que a encruzilhada actual empurra o país para o agravamento da guerra e como consequência para a ditadura. A ocupação estrangeira conseguiu criar um regime que deu continuidade ao despotismo da clique de Sadam Hussein, afogando as aspirações do povo iraquiano a uma vida digna.

O sistema criado pela ocupação, baseado na distribuição sectária e étnica do poder, produz tensões sociais fortes, fragmentação politica e impõe um apartheid cultural na sociedade iraquiana. O principal objectivo deste sistema é o de aprofundar as divisões do país, destruir a unidade e a coesão nacional, para depois poder traçar novas fronteiras e reforçar no terreno os fantoches neocoloniais das multinacionais.

É impossível às instituição democráticas poderem implementar-se no Iraque actual, ou ao Estado reforçar o seu papel e assumir as suas funções. As consequências de dez anos de ocupação são trágicas, dramáticas e destruidoras. A sociedade iraquiana está completamente destruturada e a nação iraquiana mergulhou num abismo, onde a violência impera. A consolidação da soberania nacional, requere o reforço da soberania popular, instituições civis regidas pela lei. Mas estas são aspirações tornadas miragens, pela ocupação. USA, estados do golfo e Turquia, alimentam uma guerra sectária, com o propósito de dividir o Iraque em pelo menos três estados. Financiam o terrorismo, mantendo assim a instabilidade corrosiva e prolongando a agonia da população.

A incapacidade do Estado em estabelecer o seu domínio político leva a que o poder tribal, as milícias sectárias, os mercenários que pululam pelo país, levados pelas companhias ocidentais, como seguranças privados, assim como os mercenários infiltrados através das fronteiras, que militam na Al-Qaeda, preenchem o vazio de poder e facilitam a interferência estrangeira – dos quais são veículos - nos assuntos iraquianos.   

Mas a elite política iraquiana tem dois problemas: não é elite e não é política. Ou seja, não existe. A ocupação colocou no poder os que vieram dos USA, geralmente comerciantes, traficantes e funcionários indígenas das multinacionais, que faziam formações nos USA, os chefes tribais, os líderes dos clãs, os funcionários religiosos, mas nenhum deles é de elite e nem, vale a pena referir a cultura politica, mesmo ao nível da cidadania. Não são pessoas que demonstrem muitas preocupações sociais, com direitos ou com questões de administração da polis ou da res publica.  

O resultado é que o Iraque tem no poder uma camada inútil de homens de negócios falidos (o melhor que os USA conseguiram arranjar para colocar no poder, sem fazerem muitas perguntas). Não se faz nada neste país, a não ser que se possa lucrar com qualquer coisa. Daí que a política social, a educação, a saúde, sejam áreas em que, os governantes, nada fazem, porque não são rentáveis, nem passiveis de serem comissionadas. Na saúde e na educação ficam-se pelas escolas e clinicas privadas. Isso rende, mas hospitais públicos, escolas publicas? Não rende, logo não há.   
                  
Por detrás disto vem o resto. O Iraque não tem um exército, coeso, disciplinado, mas sim uma coleção de milícias, privadas, compostas por mercenários e de múltiplas lealdades. E tem uma polícia que segue pelo mesmo caminho. Instituições democráticas? Nem na televisão para estrangeiro ver. As que existem funcionam á margem do sistema político. O poder judicial debate-se com graves problemas, sendo o mais grave deles a sua inerente incompetência. O poder legislativo é anedótico e está permanentemente paralisado, bloqueado pelos negócios…dos deputados. A soberania popular é um conceito estranho á “boa governação” iraquiana e quanto á soberania nacional, os dirigentes iraquianos não sabem o que isso é, tão habituados que estão a dizer “Yes sir”.

Claro que existem excepções…quanto mais não seja para confirmar a regra.

II - Assume, por isso, particular relevância o plano norte-americano, apresentado pelo vice-presidente Joe Biden, que preconiza um “Iraque federado”, uma espécie de “Estados Unidos do Iraque”, que divide o país em três Estados, atropelando a História milenar da região. Com este plano, os USA demonstraram quais foram os objectivos que os motivaram durante a agressão e posterior ocupação do território iraquiano. Apresentado como um plano vital para a restruturação do Estado iraquiano, o plano é apenas mais uma das muitas projecções norte-americanas no Iraque, que o tempo esquece, por não serem concretizáveis.

Bastaria aos norte-americanos terem procurado exemplos políticos concretos de autonomia, para verificarem que este plano tem todas as condições para ir cano abaixo, a partir de uma qualquer sanita, num qualquer WC de Bagdade. Mais uma vez os governantes norte-americanos não parecem ser grandes conhecedores das realidades histórico-geográficas da região, sendo os factores culturais demasiado complexos para as linhas esquemáticas da geopolítica e da geoeconomia norte-americanas, elaboradas como se fossem memorandos de uma qualquer multinacional, contendo apenas os chavões necessários para os empregados compreenderem. Talvez Harvard e Yale tenham descido no nível da qualidade do ensino, ou talvez a política externa norte-americana esteja a ser desenrolada por sargentos das forças especiais, que pesam menos nas contas de salários das corporações, uma vez que são mão-de-obra mais barata do que os diplomatas, formados em Harvard ou em Yale.

Um exemplo concreto de como as articulações culturais podem funcionar ao nível político, encontra-se por debaixo do nariz dos estrategas norte-americanos: o Partido Comunista do Iraque (PCI) que tão louvado foi pelos institutos norte-americanos para a democracia como o National Endowment for Democracy (NED), o International Republican Institute (IRI), o DNI e a Freedom House (FH). A presidente do DNI, a ex-Secretária de Estado Madeleine Albright, por diversas vezes referiu-se ao papel do PCI, em termos elogiosos e agradecendo a colaboração prestada no derrube de Sadam.

Pois o PCI tem uma estrutura política completamente autónoma para o Curdistão iraquiano: o Partido Comunista do Curdistão (PCK). Os curdos constituem 20% dos membros do Comité Central (CC) do PCI e todo o Secretariado do Comité Central do PCK é membro do Bureau Politico (BP) do PCI. Foram criados comités especializados e comissões de coordenação entre os BP dos dois partidos e os dois CC, com o objectivo de fazer consultas e de formular planos de acção apropriados. O PCK tem o seu próprio programa e actua com total independência nos assuntos relacionados com os Curdos do Iraque e na articulação com os partidos curdos da Síria e da Turquia (o PCK tem uma relação muito estreita com o PKK, o partido dos Trabalhadores do Curdistão e com diversas organizações curdas na Síria).

Um segundo exemplo, que a CIA conhece bem, são as articuladas e bem coordenadas organizações xiitas, tanto as nacionais iraquianas, como as comunitárias (curdas, da União do Povo Curdo, as do Sul do Iraque e de outras comunidades). São também um exemplo de autonomia política e que actuam de forma absolutamente independente, mas com uma extrema coordenação e articulação, surgindo como um bloco, tanto no parlamento, como nas ruas ou nas situações de defesa. Se os estrategas norte americanos olhassem com atenção para as terras que ocupam, ficariam, a saber que as estruturas organizacionais xiitas obedecem a um princípio em tudo idêntico ao do centralismo democrático, embora os centros de decisão sejam centrífugos.

Mas têm ainda um terceiro exemplo, que inclusive foi amparado pelos operacionais da CIA, desde os tempos da guerra afegã contra os soviéticos, que são as redes sunitas, miríades de redes, que formam redes de redes, até á Rede das redes. E encontrariam com certeza muitos outros exemplos de coordenação politica e de autonomia real, na sociedade iraquiana, que demonstram a inutilidade dos projectos federalistas da Casa Branca, face às estruturas federais de soberania popular, que existem no Iraque, á margem do sistema criado pela ocupação.

III - A ocupação resolveu os problemas da Halliburton e dos monopólios globalizados, mas não os do povo iraquiano, no seu todo. O desemprego, a miséria e a corrupção, são as marcas visíveis e de longo-prazo da ocupação. Aos iraquianos resta-lhes um longo caminho, onde a consolidação das instituições da soberania popular e a edificação de um Estado capaz, são as ferramentas necessárias ao progresso e desenvolvimento da nação iraquiana.

Para isto acontecer, assume particular urgência a alteração do actual sistema de distribuição de poder, assente na fórmula sectária e étnica, que distorce a vida politica e social do país. A eliminação deste sistema é o ponto de partida para a reconstrução da economia e da sociedade iraquiana. Reapropriação dos recursos e criação de um sistema gerador de riqueza e de bem-estar para o povo, criando uma política social assente nos serviços públicos de saúde e educação. Esta é a forma de assegurar a coesão social e de afirmar a cidadania e de assegurar o combate ao terrorismo, assegurando os direitos humanos.

O Reino Unido e os USA deram as costas, de forma arrogante, tão arrogante como quando ocuparam o país. Para trás deixaram um rasto de destruição e morte. Segundo o Dr. Jawad al-Ali - um especialista em oncologia, do Hospital Universitário de Sadr (ou do que resta dele), um quadro superior iraquiano internacionalmente reconhecido pelos seus trabalhos científicos e um académico de nome nos meios universitários mundiais - morrem entre 30 a 35 pacientes com cancro, em cada mês. Antes da ocupação a média era de dois a três casos. Segundo ele, entre 40% a 48% da população na faixa etária dos 30 a 35 anos, padece de cancro.

Por sua vez a Dra. Ginan Ghalib Hassen, pediatra, declarou numa entrevista efectuada a John Pilger, e publicada no Guardian, que existem imensos casos de neuroblastoma, um tumor que era raro (uma média de 1 caso em cada 10 anos) e que foi repentinamente incrementado, provocado por malformações genéticas, um processo similar ao que ocorreu em Hiroxima. Entre a classe médica de Bagdade a opinião é unanime. As munições de uranio empobrecido utilizados pelas forças norte-americanas e britânicas, são as grandes responsáveis pelo incremento exponencial de casos cancerígenos. É bom não esquecer que foram usadas mais de 300 toneladas de uranio empobrecido na guerra do golfo.

Karol Sikora, oncólogo, director do programa para o câncer da OMS durante a década de 90, assumiu no British Medical Journal, que os assessores britânicos e norte-americanos, no comité de sanções ao Iraque, bloquearam constantemente o equipamento de radioterapia, as terapêuticas de quimioterapia e os analgésicos, que estariam preparados para serem embarcados para o Iraque. Segundo o Dr. Karol, a OMS proibiu todos os seus responsáveis de fazerem qualquer referência a este assunto.

Estas declarações foram coadjuvadas, recentemente, por Hans von Sponeck, ex-assistente do secretário-geral da INU e alto responsável pelos assuntos humanitários da ONU no Iraque. Hans acusa o governo norte-americano de ter impedido a investigação nas zonas em que foram utilizadas munições com uranio empobrecido. A OMS e o Ministério da Saúde do governo Iraquiano efectuaram um estudo conjunto, que abarcou 10 mil e oitocentas localizações, mas mantem-se secreto e proibida a sua divulgação.

As instituições internacionais fazem orelhas moucas quando se fala no Iraque. Mas não só as instituições internacionais. A morte de 57 iraquianos, num só dia, recentemente ocorrida, passou despercebida, devido ao assassinato de um soldado britânico em Londres. Parece que não houve espaço, nas cadeias televisivas, jornais e rádios, para dar a notícia dos 57 iraquianos mortos. Todo o espaço informativo foi ocupado pela morte do soldado britânico…

IV - Segundo o ministério iraquiano para os assuntos sociais, cerca de quatro milhões e quinhentas mil crianças perderam um dos seus progenitores, ou seja, 14% da população iraquiana é constituída por órfãos. Cerca de um milhão de famílias têm uma mulher, como cabeça de família, demonstrativo do elevado número de viúvas. O Iraque é uma sociedade formada por famílias destruturadas, onde a violência doméstica e as crianças abusadas são uma práctica do quotidiano. Esta é outra herança da ocupação.
   
Observe-se a situação da mulher iraquiana. Iniciemos a observação pela envolvente. Nos últimos anos, o discurso oficial do Ocidente criou uma nova versão feminista, adaptada á denominada “Guerra contra o terrorismo”. Nos meios de comunicação, na literatura, na cultura popular do Ocidente, afirma-se que as guerras no Próximo Oriente têm uma motivação feminista e François Hollande usou o mesmo argumento nos preparativos da agressão ao Mali.

Garantir os direitos da mulher em países onde esses direitos lhes eram negados, converteu-as em vítimas oprimidas e indefesas. Estas guerras assumem, assim, uma missão civilizadora, modernizadora, em tudo idênticas às motivações coloniais, ao “fardo do homem branco”. O novo discurso feminista do neocolonialismo, adaptou-se e comercializou-se, ocultando o real motivo das intervenções, invasões e ocupações militares.

As mulheres da Ásia ocidental mantêm a luta que as levará a sair da posição subalterna em que se encontram, no interior das suas próprias culturas. Esta luta está intimamente associada aos problemas económicos e políticos de que estas sociedades padecem. As guerras, as ocupações, as invasões estrangeiras complicam ainda mais a situação da mulher, como acontece no Iraque e no Afeganistão. A carestia, o desemprego, a miséria, as atrocidades da guerra, são duras realidades que duplicam a tarefa da emancipação das mulheres.  

Elas testemunharam o que aconteceu aos maridos, sofrem com os filhos a incerteza do futuro, não esquecem que na guerra de 1991, os soldados norte-americanos enterraram vivos iraquianos, nas areias do deserto, executaram prisioneiros de guerra e assassinaram milhares de soldados iraquianos que estavam em retirada, dois dias depois do cessar-fogo, naquela que passou a ser denominada por Estrada da Morte. Não esquecem que Bush pai prometeu apoiar os rebeldes xiitas e que depois os abandonou á sua sorte, quando compreendeu que eles não procuravam o sonho americano. Não esquecem os treze anos de sanções económicas que mataram dois milhões de iraquianos.

São mulheres. E como todas as mulheres, de qualquer cultura, de qualquer parte do globo, não esquecem. Como podem esquecer? São elas que lançam a humanidade ao mundo. Mesmo no Tigre e no Eufrates… 

Fontes
Khamas,  Eman Ahmed La identidad colectiva de las mujeres iraquíes como víctimas http://www.rebelion.org
The Guardian, October, 12, 2010
The Guardian, May, 20, 2013
The Guardian, May, 24, 2013
The Guardian, May, 25, 2013
The Guardian, May, 26, 2013

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