Rui Peralta, Luanda
I - Os iraquianos
que acreditam ser possível um Iraque independente e democrático, sabem que a
encruzilhada actual empurra o país para o agravamento da guerra e como consequência
para a ditadura. A ocupação estrangeira conseguiu criar um regime que deu
continuidade ao despotismo da clique de Sadam Hussein, afogando as aspirações
do povo iraquiano a uma vida digna.
O sistema criado
pela ocupação, baseado na distribuição sectária e étnica do poder, produz
tensões sociais fortes, fragmentação politica e impõe um apartheid cultural na
sociedade iraquiana. O principal objectivo deste sistema é o de aprofundar as
divisões do país, destruir a unidade e a coesão nacional, para depois poder
traçar novas fronteiras e reforçar no terreno os fantoches neocoloniais das
multinacionais.
É impossível às
instituição democráticas poderem implementar-se no Iraque actual, ou ao Estado
reforçar o seu papel e assumir as suas funções. As consequências de dez anos de
ocupação são trágicas, dramáticas e destruidoras. A sociedade iraquiana está
completamente destruturada e a nação iraquiana mergulhou num abismo, onde a
violência impera. A consolidação da soberania nacional, requere o reforço da
soberania popular, instituições civis regidas pela lei. Mas estas são
aspirações tornadas miragens, pela ocupação. USA, estados do golfo e Turquia,
alimentam uma guerra sectária, com o propósito de dividir o Iraque em pelo
menos três estados. Financiam o terrorismo, mantendo assim a instabilidade
corrosiva e prolongando a agonia da população.
A incapacidade do
Estado em estabelecer o seu domínio político leva a que o poder tribal, as
milícias sectárias, os mercenários que pululam pelo país, levados pelas
companhias ocidentais, como seguranças privados, assim como os mercenários
infiltrados através das fronteiras, que militam na Al-Qaeda, preenchem o vazio
de poder e facilitam a interferência estrangeira – dos quais são veículos - nos
assuntos iraquianos.
Mas a elite
política iraquiana tem dois problemas: não é elite e não é política. Ou seja,
não existe. A ocupação colocou no poder os que vieram dos USA, geralmente comerciantes,
traficantes e funcionários indígenas das multinacionais, que faziam formações
nos USA, os chefes tribais, os líderes dos clãs, os funcionários religiosos,
mas nenhum deles é de elite e nem, vale a pena referir a cultura politica,
mesmo ao nível da cidadania. Não são pessoas que demonstrem muitas preocupações
sociais, com direitos ou com questões de administração da polis ou da res publica.
O resultado é que o
Iraque tem no poder uma camada inútil de homens de negócios falidos (o melhor
que os USA conseguiram arranjar para colocar no poder, sem fazerem muitas
perguntas). Não se faz nada neste país, a não ser que se possa lucrar com
qualquer coisa. Daí que a política social, a educação, a saúde, sejam áreas em
que, os governantes, nada fazem, porque não são rentáveis, nem passiveis de
serem comissionadas. Na saúde e na educação ficam-se pelas escolas e clinicas
privadas. Isso rende, mas hospitais públicos, escolas publicas? Não rende, logo
não há.
Por detrás disto
vem o resto. O Iraque não tem um exército, coeso, disciplinado, mas sim uma
coleção de milícias, privadas, compostas por mercenários e de múltiplas
lealdades. E tem uma polícia que segue pelo mesmo caminho. Instituições
democráticas? Nem na televisão para estrangeiro ver. As que existem funcionam á
margem do sistema político. O poder judicial debate-se com graves problemas,
sendo o mais grave deles a sua inerente incompetência. O poder legislativo é
anedótico e está permanentemente paralisado, bloqueado pelos negócios…dos
deputados. A soberania popular é um
conceito estranho á “boa governação” iraquiana e quanto á soberania nacional,
os dirigentes iraquianos não sabem o que isso é, tão habituados que estão a
dizer “Yes sir”.
Claro que existem
excepções…quanto mais não seja para confirmar a regra.
II - Assume, por
isso, particular relevância o plano norte-americano, apresentado pelo
vice-presidente Joe Biden, que preconiza um “Iraque federado”, uma espécie de “Estados
Unidos do Iraque”, que divide o país em três Estados, atropelando a História
milenar da região. Com este plano, os USA demonstraram quais foram os
objectivos que os motivaram durante a agressão e posterior ocupação do
território iraquiano. Apresentado como um plano vital para a restruturação do
Estado iraquiano, o plano é apenas mais uma das muitas projecções
norte-americanas no Iraque, que o tempo esquece, por não serem concretizáveis.
Bastaria aos norte-americanos
terem procurado exemplos políticos concretos de autonomia, para verificarem que
este plano tem todas as condições para ir cano abaixo, a partir de uma qualquer
sanita, num qualquer WC de Bagdade. Mais uma vez os governantes
norte-americanos não parecem ser grandes conhecedores das realidades histórico-geográficas
da região, sendo os factores culturais demasiado complexos para as linhas
esquemáticas da geopolítica e da geoeconomia norte-americanas, elaboradas como
se fossem memorandos de uma qualquer multinacional, contendo apenas os chavões
necessários para os empregados compreenderem. Talvez Harvard e Yale tenham descido
no nível da qualidade do ensino, ou talvez a política externa norte-americana
esteja a ser desenrolada por sargentos das forças especiais, que pesam menos
nas contas de salários das corporações, uma vez que são mão-de-obra mais barata
do que os diplomatas, formados em Harvard ou em Yale.
Um exemplo concreto
de como as articulações culturais podem funcionar ao nível político, encontra-se
por debaixo do nariz dos estrategas norte-americanos: o Partido Comunista do
Iraque (PCI) que tão louvado foi pelos institutos norte-americanos para a
democracia como o National Endowment for Democracy (NED), o International
Republican Institute (IRI), o DNI e a Freedom House (FH). A presidente do DNI,
a ex-Secretária de Estado Madeleine Albright, por diversas vezes referiu-se ao
papel do PCI, em termos elogiosos e agradecendo a colaboração prestada no
derrube de Sadam.
Pois o PCI tem uma
estrutura política completamente autónoma para o Curdistão iraquiano: o Partido
Comunista do Curdistão (PCK). Os curdos constituem 20% dos membros do Comité
Central (CC) do PCI e todo o Secretariado do Comité Central do PCK é membro do
Bureau Politico (BP) do PCI. Foram criados comités especializados e comissões
de coordenação entre os BP dos dois partidos e os dois CC, com o objectivo de
fazer consultas e de formular planos de acção apropriados. O PCK tem o seu
próprio programa e actua com total independência nos assuntos relacionados com
os Curdos do Iraque e na articulação com os partidos curdos da Síria e da
Turquia (o PCK tem uma relação muito estreita com o PKK, o partido dos Trabalhadores
do Curdistão e com diversas organizações curdas na Síria).
Um segundo exemplo,
que a CIA conhece bem, são as articuladas e bem coordenadas organizações xiitas,
tanto as nacionais iraquianas, como as comunitárias (curdas, da União do Povo
Curdo, as do Sul do Iraque e de outras comunidades). São também um exemplo de
autonomia política e que actuam de forma absolutamente independente, mas com
uma extrema coordenação e articulação, surgindo como um bloco, tanto no
parlamento, como nas ruas ou nas situações de defesa. Se os estrategas norte
americanos olhassem com atenção para as terras que ocupam, ficariam, a saber
que as estruturas organizacionais xiitas obedecem a um princípio em tudo
idêntico ao do centralismo democrático, embora os centros de decisão sejam
centrífugos.
Mas têm ainda um
terceiro exemplo, que inclusive foi amparado pelos operacionais da CIA, desde
os tempos da guerra afegã contra os soviéticos, que são as redes sunitas,
miríades de redes, que formam redes de redes, até á Rede das redes. E
encontrariam com certeza muitos outros exemplos de coordenação politica e de
autonomia real, na sociedade iraquiana, que demonstram a inutilidade dos
projectos federalistas da Casa Branca, face às estruturas federais de soberania
popular, que existem no Iraque, á margem do sistema criado pela ocupação.
III - A ocupação
resolveu os problemas da Halliburton e dos monopólios globalizados, mas não os
do povo iraquiano, no seu todo. O desemprego, a miséria e a corrupção, são as
marcas visíveis e de longo-prazo da ocupação. Aos iraquianos resta-lhes um
longo caminho, onde a consolidação das instituições da soberania popular e a
edificação de um Estado capaz, são as ferramentas necessárias ao progresso e
desenvolvimento da nação iraquiana.
Para isto
acontecer, assume particular urgência a alteração do actual sistema de
distribuição de poder, assente na fórmula sectária e étnica, que distorce a
vida politica e social do país. A eliminação deste sistema é o ponto de partida
para a reconstrução da economia e da sociedade iraquiana. Reapropriação dos
recursos e criação de um sistema gerador de riqueza e de bem-estar para o povo,
criando uma política social assente nos serviços públicos de saúde e educação.
Esta é a forma de assegurar a coesão social e de afirmar a cidadania e de
assegurar o combate ao terrorismo, assegurando os direitos humanos.
O Reino Unido e os
USA deram as costas, de forma arrogante, tão arrogante como quando ocuparam o
país. Para trás deixaram um rasto de destruição e morte. Segundo o Dr. Jawad
al-Ali - um especialista em oncologia, do Hospital Universitário de Sadr (ou do
que resta dele), um quadro superior iraquiano internacionalmente reconhecido
pelos seus trabalhos científicos e um académico de nome nos meios
universitários mundiais - morrem entre 30 a 35 pacientes com cancro, em cada
mês. Antes da ocupação a média era de dois a três casos. Segundo ele, entre 40%
a 48% da população na faixa etária dos 30 a 35 anos, padece de cancro.
Por sua vez a Dra.
Ginan Ghalib Hassen, pediatra, declarou numa entrevista efectuada a John
Pilger, e publicada no Guardian, que existem imensos casos de neuroblastoma, um
tumor que era raro (uma média de 1 caso em cada 10 anos) e que foi
repentinamente incrementado, provocado por malformações genéticas, um processo
similar ao que ocorreu em Hiroxima. Entre a classe médica de Bagdade a opinião
é unanime. As munições de uranio empobrecido utilizados pelas forças
norte-americanas e britânicas, são as grandes responsáveis pelo incremento
exponencial de casos cancerígenos. É bom não esquecer que foram usadas mais de
300 toneladas de uranio empobrecido na guerra do golfo.
Karol Sikora,
oncólogo, director do programa para o câncer da OMS durante a década de 90,
assumiu no British Medical Journal, que os assessores britânicos e
norte-americanos, no comité de sanções ao Iraque, bloquearam constantemente o
equipamento de radioterapia, as terapêuticas de quimioterapia e os analgésicos,
que estariam preparados para serem embarcados para o Iraque. Segundo o Dr.
Karol, a OMS proibiu todos os seus responsáveis de fazerem qualquer referência
a este assunto.
Estas declarações
foram coadjuvadas, recentemente, por Hans von Sponeck, ex-assistente do
secretário-geral da INU e alto responsável pelos assuntos humanitários da ONU
no Iraque. Hans acusa o governo norte-americano de ter impedido a investigação
nas zonas em que foram utilizadas munições com uranio empobrecido. A OMS e o
Ministério da Saúde do governo Iraquiano efectuaram um estudo conjunto, que
abarcou 10 mil e oitocentas localizações, mas mantem-se secreto e proibida a
sua divulgação.
As instituições
internacionais fazem orelhas moucas quando se fala no Iraque. Mas não só as
instituições internacionais. A morte de 57 iraquianos, num só dia, recentemente
ocorrida, passou despercebida, devido ao assassinato de um soldado britânico em
Londres. Parece que não houve espaço, nas cadeias televisivas, jornais e
rádios, para dar a notícia dos 57 iraquianos mortos. Todo o espaço informativo
foi ocupado pela morte do soldado britânico…
IV - Segundo o
ministério iraquiano para os assuntos sociais, cerca de quatro milhões e
quinhentas mil crianças perderam um dos seus progenitores, ou seja, 14% da
população iraquiana é constituída por órfãos. Cerca de um milhão de famílias
têm uma mulher, como cabeça de família, demonstrativo do elevado número de
viúvas. O Iraque é uma sociedade formada por famílias destruturadas, onde a
violência doméstica e as crianças abusadas são uma práctica do quotidiano. Esta
é outra herança da ocupação.
Observe-se a
situação da mulher iraquiana. Iniciemos a observação pela envolvente. Nos
últimos anos, o discurso oficial do Ocidente criou uma nova versão feminista,
adaptada á denominada “Guerra contra o terrorismo”. Nos meios de comunicação,
na literatura, na cultura popular do Ocidente, afirma-se que as guerras no
Próximo Oriente têm uma motivação feminista e François Hollande usou o mesmo
argumento nos preparativos da agressão ao Mali.
Garantir os
direitos da mulher em países onde esses direitos lhes eram negados,
converteu-as em vítimas oprimidas e indefesas. Estas guerras assumem, assim,
uma missão civilizadora, modernizadora, em tudo idênticas às motivações
coloniais, ao “fardo do homem branco”. O novo discurso feminista do
neocolonialismo, adaptou-se e comercializou-se, ocultando o real motivo das
intervenções, invasões e ocupações militares.
As mulheres da Ásia
ocidental mantêm a luta que as levará a sair da posição subalterna em que se
encontram, no interior das suas próprias culturas. Esta luta está intimamente
associada aos problemas económicos e políticos de que estas sociedades padecem.
As guerras, as ocupações, as invasões estrangeiras complicam ainda mais a
situação da mulher, como acontece no Iraque e no Afeganistão. A carestia, o
desemprego, a miséria, as atrocidades da guerra, são duras realidades que
duplicam a tarefa da emancipação das mulheres.
Elas testemunharam
o que aconteceu aos maridos, sofrem com os filhos a incerteza do futuro, não
esquecem que na guerra de 1991, os soldados norte-americanos enterraram vivos
iraquianos, nas areias do deserto, executaram prisioneiros de guerra e
assassinaram milhares de soldados iraquianos que estavam em retirada, dois dias
depois do cessar-fogo, naquela que passou a ser denominada por Estrada da
Morte. Não esquecem que Bush pai prometeu apoiar os rebeldes xiitas e que depois
os abandonou á sua sorte, quando compreendeu que eles não procuravam o sonho
americano. Não esquecem os treze anos de sanções económicas que mataram dois
milhões de iraquianos.
São mulheres. E
como todas as mulheres, de qualquer cultura, de qualquer parte do globo, não
esquecem. Como podem esquecer? São elas que lançam a humanidade ao mundo. Mesmo
no Tigre e no Eufrates…
Fontes
Khamas, Eman Ahmed La identidad colectiva de las
mujeres iraquíes como víctimas http://www.rebelion.org
Pilger, John http://www.guardian.co.uk/commentisfree/2013/may/26/iraqis-cant-turn-backs-on-deadly-legacy
The Guardian, October,
12, 2010
The Guardian, May,
20, 2013
The Guardian, May,
24, 2013
The Guardian, May,
25, 2013
The Guardian, May,
26, 2013
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