Miguel Sousa
Tavares - Leituras
Pode, se o deixarem
à solta: é o que Vítor Gaspar está há quase dois anos a tentar fazer a
Portugal. Ele dará cabo do país e não deixará pedra sobre pedra se não for
urgentemente dispensado e mandado regressar à nave dos loucos de onde se
evadiu.
Já suportámos tudo
a Vítor Gaspar: nove trimestres consecutivos de previsões sucessivamente
falhadas; erros de avaliação de uma incompetência chocante; subidas de impostos
que conseguiram o milagre de fazer cair a receita fiscal; meio milhão de novos
desempregados em menos de dois anos e milhares de empresas chutadas para a
falência; cortes cegos em tudo o que estava em marcha para mudar o nosso
paradigma de país subdesenvolvido — como a aposta na investigação, na ciência,
nas novas tecnologias, nas energias alternativas; um despudor e uma arrogância
a corrigir os erros cometidos com novos erros idênticos, que, mais do que teimosia
e obstinação suicidarias, revelam sim o desespero de um ditador intelectual
perdido no labirinto da sua ignorância. Gaspar não sabe como sair do desastre
em que nos meteu e, como um timoneiro de uma nave em rota de perdição, ele já
não vê nem passageiros nem carga, ou empregos e vidas a salvar: prefere que o
navio se afunde com todos a bordo e ele ao leme. Sem sobreviventes nem
testemunhas.
Vendo-o na sua
última aparição pública, a dar conta das linhas orientadoras do DEO, percebi
que ele já não tem rumo nem bússola. Nem sequer tem linhas orientadoras da
estratégia orçamental ou do que quer que seja. Apenas tem um número, que,
aliás, vai sucessivamente engrossando à medida que o desastre se vai tomando
cada dia mais nítido: 1,3 mil milhões, 4 mil milhões, 6,5 mil milhões. Cada
nova previsão falhada, cada novo erro de avaliação por ele cometido, tem como
consequência, não um pedido de desculpas ou a promessa de se render e arrepiar
caminho, mas antes a ameaça de mais e mais sacrifícios sobre uma economia e um
povo exauridos. Afinal, anuncia ele agora, a recessão não vai inverter-se no
final deste ano, como previra, mas só lá para 2015 ou 16; afinal, o “desemprego
ainda vai subir antes de começar a descer” daqui a uns dois anos, talvez;
afinal, a “sustentabilidade das contas públicas”, que nos diziam iminentemente
assegurada, vai exigir sacrifícios “para uma geração”. Mas o que mais me choca
ainda é o tom nonchalant com que debita as novas ameaças, como se,
milhão a mais milhão ou a menos, dois anos a mais ou dois anos a menos, não
fizesse grande diferença nas vidas concretas de gente concreta, destruídas a
mando da sua incompetência.
Sim, incompetência:
porque o mais extraordinário de tudo é pensar que Vítor Gaspar impôs ao país
uma política de austeridade suicida que o conduziu a uma das maiores recessões
da sua história e sem fim à vista e, em troca, não conseguiu as duas que ele e
os demais profetas da sua seita de fanáticos juravam ir alcançar sobre as
ruínas do país: nem fez a reforma do Estado nem controlou o crescimento da
dívida pública — pelo contrário, perdeu-lhe o controlo. Mas para onde foram
então os 24.000 milhões de euros que as políticas de austeridade de Vítor
Gaspar roubaram à economia, às empresas e aos trabalhadores e pensionistas, nestes
dois anos? Sumiram-se para onde, serviram para quê?
Incompetência,
porque tudo aquilo que Vítor Gaspar sabe fazer e faz, qualquer merceeiro, sem
ofensa, sabe fazer: contas de somar e subtrair. Agora, faltam-lhe 6,5 mil
milhões? É fácil de resolver, basta agarrar numa caneta e num papel.
Ora, vejamos: conta
de subtrair — tiram-se 2 mil milhões aos pensionistas e 3 mil milhões aos
salários dos funcionários públicos. Temos 5 mil milhões, faltam 1,5.
Conta de somar:
aumenta-se o IRS (o único imposto que ainda garante retomo acrescido na receita
fiscal). Aí estão os 6,5 mil milhões — a “reforma do Estado”. Mas alguém lembra
então a Gaspar que isto vai significar menos consumo privado e que menos
consumo significa mais falências, mais desemprego, mais subsídios de desemprego
a pagar. Contrariado, Gaspar volta a agarrar na caneta e desenha nova “medida
de estratégia orçamental”, ou seja, nova conta de subtrair: tira-se meio milhão
às verbas do subsídio de desemprego. E quando alguém lembra ao ministro que o
subsídio de desemprego já foi reduzido na sua duração a um paliativo mínimo e
as suas regras de acesso, de tão restritivas que são, apenas abrangem 45% dos
desempregados, Gaspar responde: “Então, por isso mesmo, e, aliás, em obediência
ao princípio da igualdade, diminui-se a prestação aos que a têm”.
É assim que Vítor
Gaspar governa o país, perante a aquiescência do primeiro-ministro e a
cumplicidade do Presidente da República. Eles sustentam que tudo fará sentido e
valerá a pena no dia em que Portugal regressar aos mercados.
Não é um sonho, é
um delírio: quanto mais o PIB cai mais sobe a dívida pública, calculada em
percentagem do PIB. E, quando olharem para nós, sem a “protecção”
da troika, o que irão os mercados ver? Um país em recessão permanente, com
a dívida sempre a subir e governado por Passos Coelho e Vítor Gaspar. Em que
filme de aventuras é que eles aprenderam que um país assim é salvo por
filantropos? Não, Gaspar não nos vai levar de volta aos mercados, a não ser em
condições de estertor final; ele vai é levar-nos de volta a um novo resgate. E
esse vai fazer-nos retroceder cem anos.
Há alternativa? Há,
tem de haver. É isso que o novo primeiro-ministro italiano, Enrico Lette, anda
a dizer pela Europa fora: tem de ser possível fazer a reforma financeira dos
Estados e fazer aceitar os sacrifícios necessários para tal, desde que, em
contrapartida, tudo o que os governos tenham para oferecer não seja uma geração
de sacrifícios, como anuncia displicentemente Vítor Gaspar. Porque, como disse
Leite, aquilo que não faz sentido e que é intolerável é continuar com políticas
que geram taxas de desemprego de 15, 20, 25% e de desemprego juvenil entre 30 a
50%. Pode ser que na nave dos loucos onde se produzem génios da dimensão de um
Vítor Gaspar se tenha congeminado a tese final do capitalismo triunfante: uma
economia sem trabalho e sem trabalhadores. Às vezes dá-me mesmo a ideia de que
sim, mas é preciso que a loucura deles seja da estirpe mais perigosa de todas
para imaginarem que a Europa e qualquer uma das suas nações sobreviverá assim e
pacificamente.
Mesmo com um
Governo italiano arrastando ainda e uma vez mais o fantoche de Berlusconi,
mesmo com uma França chefiada pelo triste Hollande ou uma Espanha chefiada pelo
incapaz Rajoy, mesmo com a Grécia de Samaras, a Europa do sul está finalmente a
mover-se, por instinto de sobrevivência. Sem perder tempo, Lette foi direito à
origem do mal: a Berlim e a Bruxelas. Ele não fará abalar Angela Merkel nas
suas convicções e interesses próprios e não conseguirá também fazer com que
Durão Barroso deixe de oscilar conforme o vento, até ficar tonto. Mas, se
conseguir unir o sul e juntar-lhe outros povos acorrentados pelos credores e
condenados à miséria, enquanto o norte prospera sobre a ruína alheia, de duas
uma: ou a Europa se reconstrói como uma livre associação de Estados livres ou
implode às mãos da Alemanha. Qualquer das soluções é melhor do que esta morte
lenta a que nos condenaram. (…)
É claro que nada
disto dá que pensar a Vítor Gaspar, que vem de outro planeta e para lá caminha,
nem a Passos Coelho, que estremece de horror só de pensar que alguém possa
desafiar a autoridade da sua padroeira alemã. Nisso também tivemos azar:
calhou-nos o pior país para viver esta crise. Mas este Governo vai rebentar,
tem de rebentar. Porque a resposta à pergunta feita acima é não. Não, um homem
sozinho não pode dar cabo de um país com quase nove séculos de história.
Sem comentários:
Enviar um comentário