Pacheco Pereira -
Abrupto
Nunca em toda a
minha vida, antes ou depois do 25 de Abril, senti um tão agudo ambiente de
"luta de classes". Os de baixo contra os de cima. os de cima contra
os de baixo. Os de cima que fazem de conta que não há os de baixo, não existem,
ponto. Os de baixo que se pudessem apanhar os de cima, sem a corte de
guarda-costas, os fariam passar um mau bocado. Sem organização, sem instigação,
como quem respira.
Em 1974-5, o
conflito era de outra natureza, era dominantemente político, e não tinha essa
fractura social evidente e agressiva como base. Era sobre liberdade e ditadura,
sobre o Portugal do passado mais do que sobre o Portugal do futuro. Com
excepção dos retornados, pouca gente sofreu nesses anos, nem mesmo os presos
pelos mandatos de captura em branco do Otelo, ou as centenas de MRPP
presos. Dez anos bastaram para normalizar a democracia, acabar com os restos do
PREC, absorver os retornados, sem feridas permanentes.
Agora as feridas
vão ser profundas e vão durar muito tempo. A identidade do país soçobrou dentro
da Europa a favor da burocracia de Bruxelas e do directório alemão. Antes era
por inconsciência, agora é pela necessidade. Mas, antes e agora, porque a nossa
elite dirigente tem em pequena conta o país, não gosta dos portugueses,
desconhece a nossa história e tradições, e está dominada por interesses. Não
lhes passa pela cabeça que, agora que as pessoas têm que comer terra, talvez
escolhesssem comer a mesma terra que comem e vão comer no futuro, sem ter que
suportar a tutela arrogante de quem, nos desprezando, nos dá lições de moral e
disciplina.
O tecido social
está rasgado, o país deslaçado, onde um discurso de guerra civil penetra,
fazendo o vizinho dono de um pequeno café, vergado de impostos, voltar-se
contra o vizinho professor em vésperas de ser "requalificado",
em vez de olhar para cima, para quem de forma leviana e muitas vezes
incompetente, balizado apenas pelo círculo de ferro do nossso establishment,
no qual a banca define a pertença e a exclusão, está a conduzir uma operação de
empobrecimento colectivo de muitos para salvar a "economia" de
poucos. E esses poucos, são os que nos colocaram na situação em que estamos.
Hoje há reacção,
reacção de reaccionarismo. Há um acantonamento de emergência com armas e bagagens
do lado do governo, preparado para tudo, para ser agressivo, para fazer todas
as chantagens (a chantagem teve um papel nesta crise), a cilindrar tudo e todos
à frente. Do outro lado, tem um enorme vazio, Antònio José Seguro, o homem que
não existiu nesta crise, porque eleições antecipadas era a última coisa que
queria, em razão inversa das vezes de que falou nelas. À direita aconselham-no
a "fazer de morto", para castrar todas as veleidades de ele fazer
qualquer oposição que se veja. É um conselho errado, porque ele está já de há
muito morto, não precisa de se "fazer". E está morto do lado
deste Navio Fantasma que é o governo.
E depois tem um BE
encurralado e sem estratégia, e um PCP, há muito tempo numa posição defensiva, que
tem um papel fundamental nos sindicatos (sem a acção sindical de resistência,
real ou potencial, ninguém falaria de "cansaço da austeridade" e o
governo e a troika teriam ido muito mais longe na criação do país de mão de
obra barata e disciplinada que pretendem), mas é inútil no plano político. Os
"indignados" e companhia tem folclore a mais e a actuação pelas redes
sociais é no essencial preguiçosa e atentista.
Ou seja, a maioria
dos de baixo está entregue à fúria populista e ao desespero.
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