Miguel Gaspar –
Público, opinião
“Temível, a
linguagem dos gestos falou mais alto do que os silêncios. As câmaras de
televisão e dos fotojornalistas revelaram como o inferno está no coração da
coligação, que se afirma a si própria como sólida, confiável e pronta a durar.”
Tudo na cerimónia
dos Jerónimos soava a falsa inocência e a um falso desejo de redenção. Como se
todos tivessem ido pedir a Deus que fizesse desaparecer a última semana.
Quando descem à
terra, os governantes já estão habituados a ouvir vaias e apupos.
Mas domingo, na
casa de Deus, o aplauso substituiu a vaia. Para conforto do Presidente da
República, Cavaco Silva, e do primeiro-ministro, Passos Coelho. Mas não do
apontado vice-primeiro-ministro, Paulo Portas. Para ele, apenas silêncio.
Sendo que silêncio foi
tudo o que os elementos da trindade que nos governa tiveram para dar aos
tristes que governam à saída da Entrada Solene do novo Patriarca de Lisboa,
domingo, no Mosteiro dos Jerónimos.
Nem uma palavrinha
de consolo para a caixa das esmolas dos repórteres. Mesmo depois do reconfortante e vigoroso
aplauso ouvido sob a abóbada do mosteiro onde os pares da república
marcaram presença para ouvir D. Manuel Clemente.
Parecia que Deus
tinha decidido dar refúgio aos desembestados governantes que tinham passado a
semana anterior em sonoras e pueris dissensões, bem como ao Presidente que
depois de atraiçoado pelos ditos governantes os forçou a manterem-se juntos.
E o agora D. Manuel
III dedicou à crise esta sentença: “A concórdia começa nos corações, quando
ninguém desiste de ninguém, seja em que campo for.”
Mas, como dizia o
poeta inglês John Milton, “É melhor reinar no Inferno do que servir no Céu”.
E os passos e os
gestos dos homens do poder nas naves da igreja de Santa Maria de Belém
denunciavam que o inferno da semana que passou estava mais presente nos
corações de Cavaco Silva, Passos Coelho e Paulo Portas do que a concórdia que
estava nas palavras de D. Manuel III.
Deus não aplacou o
inferno da crise política nem os homens que a provocaram se livraram da culpa
por comparecerem, servis e submissos, na primeira missa solene do novo
patriarca.
Não, não foi a
Igreja nem D. Manuel Clemente quem se serviu dos políticos, domingo, nos
Jerónimos. Foram os políticos que, pelo exagero e pela forma ostensiva com que
se apresentaram quiseram fazer constar que Deus estava com eles – e por isso as
chagas da crise iam passar.
Parafraseando São
Paulo e a epístola aos romanos, terão perguntado: Se Deus está connosco, quem
estará contra nós?
Temível, a
linguagem dos gestos falou mais alto do que os silêncios. As câmaras de
televisão e dos fotojornalistas revelaram como o inferno está no coração da
coligação, que se afirma a si própria como sólida, confiável e pronta a durar.
Veja-se a imagem de
Passos Coelho dentro da igreja, depois da ovação. Cumprimenta efusivamente
alguns convidados (entre os quais Maria Barroso) sem olhar para o homem que
designou vice-primeiro-ministro. É Paulo Portas quem faz um ligeiro gesto e só
então recebe um cumprimento seco do primeiro-ministro.
No sábado, no
momento do anúncio do novo acordo de governo, o cenário fora o mesmo. Nem um
aperto de mão selou a renovada concórdia. Nem um olhar. Apenas um toque de
Portas em Passos, ao qual este mal reage. Durante a leitura do documento
conjunto, mal se olham.
Regresso aos
Jerónimos e à fotografia de Nuno Ferreira Santos, capa do PÚBLICO: aí sobressai
o sorriso de Portas para Passos, com o sorriso de quem tem um brinquedo novo (o
brinquedo é a política económica, as relações com atroika e a reforma do
Estado) enquanto Cavaco, o Presidente, está em primeiro plano, mas desfocado, a
aplaudir.
Ao lado de passos,
Assunção Esteves, presidente da Assembleia da República, contempla a cena.
Durante a cerimónia será filmada a trocar impressões com o primeiro-ministro,
que lhe responde com uma expressão de alívio.
Voltando a Paulo (a
São Paulo) e à Epístola aos Romanos: Se Deus está por nós, quem estará contra
nós?
Não sendo certo de
que lado está Deus, parece certo que quem está contra o governo é o próprio
governo.
E o aplauso? Porquê
o aplauso que, como num circo romano, designou como vencedores do dia o
Presidente e o primeiro-ministro e o omitiu o suposto vice-primeiro-ministro,
que os analistas e comentadores dão como vencedor desta contenda?
Afinal de contas,
quem estava por eles? Por que aplaudiram?
Talvez por estarem
dominados pelo medo. Pelo medo do colapso. E por terem visto neles os homens
que “salvaram” a coligação e com isso evitaram uma catástrofe. Terão
demonizado, por omissão, o Paulo Portas que, solícito, beijava a mão do novo
patriarca.
Foi como um aplauso
de fim de regime. De regime a quem já só resta o medo do fim e a ilusão de o
evitar. Talvez seja um medo exagerado. Ou talvez o medo exagerado precipite o
salto para o vazio.
Tudo na cerimónia
dos Jerónimos soava a falsa inocência e a um falso desejo de redenção. Como se
todos tivessem ido pedir a Deus que fizesse desaparecer a última semana. O
beijo de Maria a Cavaco, que o Presidente recebe com surpresa, os apertos de
mão forçados, os sorrisos, os olhares que se desviam, os guiões da cerimónia
transformados em abanicos…
Um teatro do
absurdo com uma missa em pano de fundo e as paredes grossas de um mosteiro que
não deixaram entrar o calor mas conservaram a realidade do lado de fora.
Ali um regime e um
governo tiveram a ilusão de existir. E, como noutros tempos, foram pedir a Deus
a legitimação que perderam.
Um aplauso fez-se
ouvir. Mas não era Deus. Era o medo.
*Destaque de parágrafo
inicial em itálico é do texto mas com alteração PG
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