António Marinho
Pinto – Jornal de Notícias, opinião
O que ocorreu em
Portugal, durante a semana passada, com o chamado Governo da República, é bem
ilustrativo da degradação a que chegaram as nossas instituições e da
degenerescência moral que atingiu as lideranças políticas da Direita
portuguesa. A sensação imediata que nos invade é a de que estamos a viver o
enredo de uma Zarzuela medíocre interpretada por atores de muito baixo nível.
Aquele que era o
principal pilar do Governo, o ministro das Finanças, conseguiu, finalmente,
abandonar o barco, depois de constatar que ele mete água por todos os lados.
Fê-lo, através de uma carta de demissão dirigida ao primeiro-ministro, que
imediatamente tornou pública, numa atitude de falta de respeito (mesmo de
desprezo) pelo seu destinatário. Soube-se, então, que o ministro Vítor Gaspar,
o protagonista das políticas económicas e financeiras do Governo, o grande
impulsionador e teorizador das medidas de austeridade que lançaram na pobreza e
na miséria milhares de portugueses, já há mais de um ano que tentava sair, por
verificar que essas medidas conduziriam Portugal e os portugueses ao desastre
económico e social.
Que o ex-ministro
Vítor Gaspar seja cobarde e irresponsável e fuja, não sendo normal, ainda se
pode compreender, justamente porque fugiu. Mas que quem o escolheu e apoiou
durante dois anos continue ao leme do barco como se não tivesse
responsabilidade nenhuma na situação, isso é que já só demonstra a anomia
cívica da sociedade e a incapacidade política de quem tem a obrigação de
garantir o normal funcionamento das instituições democráticas.
Numa medida de
aparente vingança contra Paulo Portas (já que a este se imputam as principais
responsabilidades da partida de Vítor Gaspar), o primeiro-ministro nomeou para
ministra de Estado e das Finanças a principal colaboradora do ministro
fugitivo, apesar de ela própria estar atolada num gigantesco escândalo
financeiro. Haveria muitas mais pessoas que poderiam ser nomeadas para o cargo,
mas Passos Coelho sabia que nenhuma chatearia tanto o ministro Paulo Portas
como a Senhora Maria Luís Albuquerque. Por isso a escolheu. A resposta não se
fez esperar. Na manhã do dia da tomada de posse da nova ministra, o ministro
Paulo Portas demitiu-se através de uma carta enviada ao primeiro-ministro e que
imediatamente tornou pública. (As comadres das aldeias de Portugal, quando se
zangam, fazem-no com mais recato e reserva do que os ministros deste Governo).
Nessa carta Portas acusa Passos Coelho de optar por uma política de mera
continuidade no Ministério das Finanças e que a escolha de ministra dos swaps
não fora "cuidadosa" nem "consensual" mesmo depois de
alertado para essa necessidade pelo próprio remetente. Sustentou que o seu
contributo ao Governo tornou-se dispensável pela forma como o próprio Governo, "reiteradamente",
tomava as suas decisões, frisou que continuar no Executivo seria um ato de
dissimulação que não era politicamente sustentável e garantiu que a sua
demissão era irrevogável.
No sábado à tarde,
o país inteiro, atónito, ficou a saber que, afinal, a demissão de Portas já era
revogável, que a sua continuação no Governo já se tornara sustentável e que já
não constituía um ato de dissimulação. Bastou Pedro Passos Coelho dar-lhe uma
parte maior do pote para imediatamente tudo se compor entre ambos.
Ficamos, pois, a
saber que Portas tem a espinha dorsal de uma crisálida e que Passos Coelho é um
incompetente sem qualquer capacidade de liderança política. Ficamos a saber
que, para ambos, o que verdadeiramente importa são os interesses próprios e das
respetivas clientelas que, cinicamente, escondem atrás do biombo do interesse
nacional. Ficamos a saber que se odeiam reciprocamente e que só o pote os
mantém coligados. Ficamos a saber que durante os últimos dois anos gastaram o
tempo e parte significativa dos recursos públicos a intrigar e a conspirar um
contra o outro, em vez de governarem. Ficamos a saber que tudo o que aconteceu
foi apenas o primeiro ato de uma zarzuela de terror e que agora vai iniciar-se
o seu segundo ato. Passos Coelho e Portas mostraram que não ter vergonha traz
vantagens, mas não ter vergonha absolutamente nenhuma traz incomparavelmente
mais vantagens.
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